Também eram do Oswaldo muitos dos livros de Teoria Literária que li e trouxe na mala do Rio para Juiz de Fora para fazer a prova, em 2004, na UFJF.
O tema sorteado para a prova escrita foi Teoria da Literatura e Leitura:
Quase não tínhamos livros em casa / E a cidade não tinha livrarias/ Mas os livros que em nossa vida entraram / São como a radiação de um corpo negro / Apontando para a expansão do universo / Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso / (E, sem dúvida, sobretudo o verso) / É o que pode lançar mundos no mundo.
Caetano Veloso: Livros
Citamos os versos de Caetano Veloso, pois esta epígrafe fomenta, bastante sinteticamente, as ideias que mostrarão as reflexões aqui apresentadas acerca da leitura. O tema, por amplo, merece um recorte preciso. É do ponto de vista de um professor de literatura que se toma a palavra. Professor brasileiro, é bom acrescentar. Os dois primeiros versos da epígrafe trazem à tona esta realidade. Apontam para uma escassez que, no Brasil, é patente e generalizada.
Por outro lado, estar na área das Letras é acreditar na transformação desta realidade pelo texto, é afirmar-se agente mediador daquelas “radiações” que apontam para a expansão de universo de que nos fala a canção. É desta forma que tais reflexões, por mais que se façam teóricas, vão ter como fim a prática de leitura e de produção textual como vivências pedagógicas.
Aqui, ao se usar o termo leitura, objetiva-se definir um ato que, mais amplo, tem no gesto da interpretação apenas uma de suas facetas. Esta ressalva demandará uma recuperação teórico-histórica da hermenêutica como ciência da interpretação. É o que se fará na primeira parte do texto. Tal retomada decerto culminará nas reflexões teóricas que, a partir dos anos de 1960, reabilitam o leitor como importante instância do processo de compreensão do texto, tais como a Estética da Recepção e do Efeito, ou os teóricos que se agrupam em torno da tendência que ficou conhecida como Reader-response cristicism, a partir dos quais se pode pensar na substituição do termo interpretação por leitura.
Num segundo momento, a reflexão enfocará aspectos relacionados à produção textual. Pretende-se demonstrar como este conceito está intimamente ligado ao de Leitura/Interpretação, ou seja, a leitura só se efetiva quando redunda em escritura. Algumas idéias de Pièrre Lévy, sobretudo, os conceitos de virtualização e atualização, constituirão o alicerce para esta parte.
Em seguida, para encaminhar uma conclusão, retornar-se-á, a partir dos pressupostos teóricos apresentados, uma abordagem pedagógica voltada para os problemas relacionados à interpretação e produção textual em sala de aula, a fim de que efetive um trabalho que permita mediar a transformação humana através do texto, e, para retomar-se a epígrafe, “sem dúvida sobretudo o verso”.
Retrospecto teórico
Quem, aluno(a) de Letras, nunca experimentou a sensação que talvez se defina como um tipo de deslumbramento, quando numa aula expositiva, seu professor apresentou a interpretação de um poema hermético de Drummond ou de um jogo onomástico de Machado. Sublinhe-se a interpretação, pois sempre foi (às vezes com maior ou menor grau de relativização) este um dos papéis do professor de literatura – o de revelador de uma “verdade oculta pelo texto”. Porém, durante muito tempo, pouco se refletiu que a interpretação, naquele momento, deu-se enquanto formulação possível a partir da rearticulação de um repertório. O caminho que vai da interpretação à noção ampla de leitor é o mesmo que, aqui, situa-se entre a revelação da “verdade oculta pelo texto” e o que chamamos rearticulação de um repertório. No entanto, enquanto apresenta a interpretação, o professor expõe um saber (até certo ponto inatingível pelo discente por falta do mesmo repertório) e torna a sua leitura bastante distanciada da dos estudantes, dificultando, assim, a troca de conhecimentos.
Sintomaticamente, Wolfgang Iser introduz sua reflexão sobre o ato da leitura (ISER: “O ato da leitura”) através da referência a um conto de Henry James (A imagem no tapete) em que o romancista já questionava, no século XIX, o papel do crítico como revelador de uma verdade sobre a obra. Troque-se o crítico literário definido por James e Iser pelo professor mencionado no parágrafo acima e obtém-se a mesma figura.
Até ser questionado pelas tendências críticas que surgiram a partir da década de 1960, mormente pela Estética da Recepção de do Efeito, a interpretação prevalece como forma segura de se conhecer a obra. Mas a que então se deve a primazia da interpretação como forma de conhecimento? O retorno teórico-histórico faz-se necessário para esta compreensão. É necessário entender a origem da hermenêutica, a ciência da interpretação.
O nome hermenêutica deriva de Hermes (Mercúrio, na mitologia romana), deus cuja função era ser mensageiro dos deuses e deusas. Isto traz como pressuposto a existência de uma mensagem que, para atingir o destinatário, precisa de um mediador. Nossa herança helênica, vale lembrar, foi filtrada pela tradição judaico-cristã. Dessa forma se, dos gregos herdou-se a hermenêutica filológica, da tradição medieval ficou-nos a hermenêutica teológica. Em ambas a caracterização do hermeneuta como iniciado em conhecimentos privilegiados que o distanciavam do leitor, ou melhor, do receptor final, fundou-se a tradição, de que até hoje tem-se vestígios, sustenta a existência de academias e congressos de sábios em geral.
Ao questionar a interpretação, no entanto, os teóricos o fazem através da tradição de ideias que a partir do século XIX buscaram reformular os conceitos em torno da hermenêutica, sobretudo com a formulação da Teoria Geral do Conhecimento. Destaca-se, especialmente, Schleiermacher, talvez um dos primeiros a formular a hermenêutica como um problema dialético. Fazendo a distinção entre os objetos de compreensão – o discurso e o homem, Schleiermacher difere significado (elemento produzido linguisticamente através de operadores lexicais) de sentido (uma atualização particularizada do texto, menos sistêmica que o código linguístico). Dessa forma, a interpretação poderia ser técnica ou gramatical. Nesta interessa o significado (o homem é um órgão da língua); naquela objetiva-se o sentido (a língua é um órgão do homem). Produzir o sentido seria então possível através do que Schleiermacher nomeou “Método divinatório”, uma busca de compreender o individual diretamente, através da transformação de intérprete no outro. Nesta perspectiva, aqui em linhas gerais comentadas, Schleiermacher formula paradoxalmente sua proposta: “Deve-se compreender o homem para compreender o seu discurso, mas só a partir do discurso é que se pode conhecê-lo.”(Apud Luiz Costa Lima: A teoria da Literatura em Suas Fontes, “Hermenêutica”)
Talvez neste círculo esteja a origem da contestação que nos anos 60/70 mudaria o enfoque da interpretação para a leitura. No entanto, os autores da Estética da Recepção e do Efeito seriam herdeiros diretos de Gadamer e este, discípulo de Heidegger. Ao propor um relacionamento entre hermenêutica e história, afirma que a interpretação não se separa da obra, mas a integra enquanto presença histórica, Gadamer abre caminho para que Jauss, na década de 60, proponha a história da literatura como provocação à teoria literária.
Em seu manifesto, Jauss, a partir da constatação da desvalorização da literatura como disciplina nas escolas alemãs (e este quadro muito se assemelha ao do Brasil atual), propõe uma revitalização dos estudos literários colocando-se por muito tempo entre as tendências formalistas e sociológicas que predominavam então: quer recuperar o vigor histórico da literatura pelo viés da recepção, ou seja, rearticulando ser e tempo.
A referência ao título da principal obra de Heidegger não é gratuita. Como se afirmou, as ideias de Gadamer, das quais Jauss lança mão, foram possíveis a partir das formulações de Heidegger, segundo as quais a compreensão não é entendida como um dos modos do proceder mental humano, mas se confunde com a existência, ou, como frequentemente é traduzido o termo dasein de Heidegger, ser-aí. A compreensão é o momento da existência e não algo que paira sobre ele. Compreender o ser só é possível em sua pontificação, no seu “em sendo”; então interpretar, ainda segundo o filósofo, é aplicar o como em relação a um ser. A essência é o como da existência. Esta ideia Heideggeriana é homóloga a seguinte: A leitura é o como da literatura. E se há uma anterioridade que guia a compreensão ou a leitura, ela é histórica e não ontológica.
Dessa forma, a história da literatura não poderia se constituir a partir de lógica causal que norteia a história dos fatos. Na verdade, a literatura se constituiria em permanente tensão com o tempo através das leituras que este tempo proporcionaria. O sentido de atemporalidade de que se cerca o objeto artístico só é possível porque, diferente do fato histórico, que se cristaliza na data, a obra submete-se a novos tempos que podem (ou não) dar-lhe o sentido de atualidade.
Em suma, o que se pode considerar de atual em um poema épico de Homero ou de qualquer outro clássico não é sua característica intrínseca da própria obra, mas algo derivado do fato de esta obra sujeitar-se a novos tempos, novas leituras que vão, sempre, desqualificar a noção de interpretação como revelação da verdade da obra.
E, finalmente, se um professor de literatura ainda é capaz de deslumbrar os alunos com a interpretação de um poema, isto justifica-se por uma descontinuidade de repertórios entre ambos.
Trabalhar, desta forma, com a leitura em detrimento da “interpretação” seria uma forma, pelo menos, mais justa de se levar “mundos ao mundo”, como se citou na canção. Talvez o principal papel de um professor de literatura deva ser o de mediar as leituras de uma obra e não o seu sentido ou seu significado.
A leitura como produção textual
As conclusões deixadas na parte anterior apontam para a necessidade de se substituir o termo atualidade, normalmente aplicado às obras clássicas, por atualização. Este pressupõe menos uma característica inerente à obra do que uma ação necessária para que ela perdure. No entanto, a permanência dessa mesma leitura, enquanto atualização possível de uma obra, depende de uma nova escritura.
O próprio conceito de texto obriga-se a nuances tais como intertexto, hipertexto, etc. Não se concebe em um texto sem suas referências ou remissões. Ler constantemente, então, mais do que interpretar, é entrar no jogo hiper-referencial que o texto proporciona.
Piérre Levy, no intuito de elaborar o conceito de virtual, tão em voga com as novas tecnologias de comunicação, opõe-o ao de atual. Dessa forma, virtual (do latim virtus = força, potência) é o que manifesta-se potencialmente, enquanto possibilidade ou vir-a-ser. O virtual, portanto, necessita de um processo de atualização para ser. Embora seja um conceito em voga atualmente, o pensador francês identifica três estágios anteriores de virtualização do humano. Entenda-se, aqui, por virtualização, o processo inverso, ou seja, a passagem de algo que se define enquanto ato (> atual) para sua potencialização ou possibilidade. Seriam as seguintes, pela ordem: as ferramentas, como virtualização do corpo; a escrita, como virtualização do pensamento, e as leis, como virtualização da violência.
Interessa-nos, mais propriamente, a segunda das virtualizações. Uma vez considerado como elemento virtual, o texto é um vir-a-ser; o texto per se não é pensamento ou ideia. O que o torna pensamento, ou seja, o que permite a sua atualização é a leitura, o “ser-aí”. Ora, como a única forma de fixação e permanência de ideias produzidas com a leitura é a escrita, entra-se no ciclo leitura-escritura-leitor como processos sucessivos de atualização-virtualização-atualização.
Um hermeneuta clássico talvez defenda que tal movimento contínuo causa uma perda de profundidade na abordagem do objeto. Sem dúvida, a percepção do homem contemporâneo, submetido às novas tecnologias de comunicação, se dá mais em superfície do que em profundidade. O grande desafio é buscar estratégias que façam pesar mais a qualidade do ato de leitura possível nesta “biblioteca de babel”, para citarmos o conto de Borges, uma das obras que melhor dramatiza a condição de hipertextualidade.
Se as facilidades de publicação e distribuição (além de acesso) aos textos se configuram no “mundo virtual” da contemporeneidade, o desvio da atenção crítica para o nível da produção pode ser uma das saídas.
Porém, no âmbito mesmo da leitura, o exercício do crítico e/ou do professor está na seleção de textos. Que textos, hoje, seriam capazes de efetivamente promover a tão almejada transformação das ideias? É na tentativa de desenvolver esta questão que se encaminha a conclusão.
“É melhor fazer uma canção.”
Retoma-se, na conclusão, versos do mesmo autor citado na epígrafe, para, além de construir uma moldura para as reflexões aqui empreendidas, fazer um contraponto ao exercício teórico que se resgatou, através de Heidegger. É do filósofo alemão a polêmica ideia de que só se é possível filosofar em alemão. Caetano Veloso, na frase citada acima, responde a esta sugestão. Que valor pode ter esta resposta e qual a real amplitude da idéia de Heidegger?
Se aceitarmos a hipótese de que uma língua se estrutura para atender às necessidades de comunicação, e expressão de um povo, não resta dúvida de que o grau de precisão vocabular, por exemplo, do alemão, língua de tendências aglutinativas, estaria mais propício à expressão de certas nuances de um pensamento rigoroso. Não significa dizer, ressalva-se, que línguas latinas não prestariam à filosofia. Pretende-se reconhecer apenas outra plasticidade.
Se concluirmos que é tarefa do crítico e/ou professor a seleção de textos para o ato da leitura, é claro que o texto poético ou ficcional é em nosso caso muito mais potente. Mário Faustino afirmou que o poeta deve ser perigoso. Na verdade, talvez nem seja poeta quem não é perigoso, quem não arrisca na linguagem. É no perigoso contato com esta linguagem que o ser é em transformação. Não é à toa que na ressalva dos elementos textuais enumerados por Caetano no início destas reflexões – “a frase, o conceito, o enredo, o verso” – esteja este último – “(E sem dúvida sobretudo o verso)”.
No verso sentimos, refletimos, somos. Façam-se as canções.
Esse é o texto da prova, tal qual o transcrevi de um rascunho. Depois aproveitei-o parcialmente para um artigo sobre literatura e indisciplina.