35- Carta de Ana Paula El-Jaick

Caro Alexandre,

Particularmente, gosto muito de poema-piada; assim, não foi difícil ler (“aqui e agora”) Venta não gostando já desde o início, no 1. Achei momentos geniais, como: “se só aonde / fica / se onde / vai” (53). Então, ventei não, guentei aí – deixei estar (essa utopia – 38, 90). Sim, achei vários poemas muito bons – “nesse circo / há glória / também” (26). E achei poemas que me ajudaram a (me) esclarecer concepções de linguagem difíceis de explicar, como a diferença enunciada por Wittgenstein entre dizer e mostrar: “a sintonia dos olhos / não cabe na boca” (15).

Sim, gostei de Venta não

mas, confesso, Anacrônicas foi meu livro favorito. Gostei já do título, um drible: um anagrama que não se descobre. Gostei do próprio livro, livrodrible: a ideia de escrever em fragmentos – que poderiam ter outra ordem (como um jogo de amarelinha…) – num tempo fragmentado: “para ser, hoje em dia, bastam alguns fragmentos” (p.61).

Vibrei com sua escrita em várias passagens, como a “bandeira da França” surgindo à medida que o sangue na boca do pivete começa a jorrar (p.24); a música que vem de uma janela e que faz com que esta seja um “ponto luminoso e sonoro” (p.27); a “cena” da morte do pai (p.30-31); a “cena” da morte do Doutor (p.62). Além, é claro, de suas (maravilhosas) palavras-valise, como neste (maravilhoso) trecho:

Os dedos finos, pele e osso, movendo para a lixeira arquivospontodoc que voltariam a ser escritos na noite seguinte e na seguinte e na outra e na outra até nosso últimominutodevida, o momento da insuficiência respiratória, da falência hepática, do vírus oportunista ou de qualquer outra metáfora, dessas que se inventam às pressas (p.33-34).

Enfim, gostei muito da sua prosa em que não há “história” a ser esperada pelo leitor, não há história à espreita. Com isso, gostei muito de o leitor não saber o que esperar – “Talvez amanheça” (p.32), mas nem sobre isso se pode ter certeza.

Sim, você me fez pensar em Wittgenstein – e em Beckett: “Nem falaria de novo, se isso não fosse absolutamente vital” (p.38).1 Também achei beckettiano o inusitado das situações, como em: “Depois do primeiro tiro continuei correndo. Pensei que não tivessem me acertado. Engano.” (p.44).

Esses momentos me interessam muito, como me interessa uma literatura que pensa a linguagem – e que pensa a linguagem não como mera representação do real ou da mente: “Mas se as tomarmos como palavras sem ficar procurando a coisa delas?” (p.38).

Me interessa uma literatura que interroga sobre / duvida da associação intrínseca entre significado e significante: “Mas depois de uma queda, Doutor, pode olhar em volta que tudo mudou; é como se os nomes das coisas virassem palavras vazias.” (p.45). Uma literatura sem sintaxe, que abandona os verbos (p.65). Uma literatura que diz “a palavra que não existia em nenhum dicionário” (p.66). Que diz do inefável, do inominável (o que também me interessa). Que diz do vazio: “Será também no vazio o gozo das coisas” (Venta não, 12) – o que também me interessa…

Uma literatura que vislumbra a linguagem como terapia / pharmakon: “E depois, melhor curativo são as palavras.” (p.48).

Em resumo: foi muito bom. Foi muito bom ler o poema da p. 60; foi muito bom (porque genial) ler a “Canção de Ana” (p. 51-55). Então: muito obrigada pelas leituras.

Grande abraço,

Ana.


1 “A expressão de que não há nada a expressar, nada com que expressar, nada a partir do que expressar, nenhuma possibilidade de expressar, nenhum desejo de expressar, aliado à obrigação de expressar” (Beckett, Três diálogos com Duthuit, 1949).

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