A primeira pessoa que me falou em Taoísmo de uma forma pessoal, como uma possibilidade de prática religiosa, foi Marcelo Mac Cord, historiador, hoje professor da Faculdade de Educação da UFF. Estávamos numa Kombi que fazia transporte público urbano alternativo e voltávamos de Realengo para o Méier depois de aulas noturnas na famigerada UniverCidade.
Quando reencontrei Marcelo era o ano de 2014, eu já pesquisava havia muitos anos literatura marginal periférica e ele coordenava um projeto de extensão, um curso de Educação para Jovens e Adultos, destinado aos funcionários terceirizados de limpeza e serviços gerais da UFF. Convidou-me para dar uma palestra para os alunos desse projeto sobre “Leitura, literatura, cidadania e criação literária nas periferias urbanas”. Fui e levei um exemplar do Venta não, lançado um ano antes, para lhe presentear. Disse-lhe, então, não sei se na dedicatória ou de viva voz, que fora ele a primeira pessoa a me falar de taoísmo. Ele acabou me convidando para dar uma passada na Sociedade Taoísta do Brasil, no Cosme Velho, endereço que passei a frequentar semanalmente.
Venta não é minha primeira aproximação do pensamento tradicional chinês. Os 81 poemas da primeira parte do livro foram criados a partir da leitura sistemática de diferentes traduções do clássico de Lao-zi, e da recriação e reordenação daqueles poemas, de forma que eu pensasse a minha contemporaneidade, a vida cotidiana e que o tom esotérico ou doutrinário pudesse ser suprimido. No projeto original havia mais indicações:
É um livro de 90 poemas que investem na interpretação da vida cotidiana contemporânea, assumindo perspectivas que tensionam e problematizam a compreensão metafísica e transcendente da existência. O livro é dividido em duas partes. Na primeira, 81 poemas recorrem a jogos intertextuais que confrontam fontes do pensamento oriental e da tradição helênica pré-socrática, principalmente o Tao, os epigramas ou fragmentos de Heráclito, explorando a contemporaneidade entre Lao-Tse e o pensador de Éfeso. A segunda parte reúne 9 poemas de três tercetos cada, em versos livres, que, através da referência à máquina do mundo (tradicional motivo poético em língua portuguesa, presente em Camões, Drummond e Haroldo de Campos), tecem a sugestão de um fio narrativo.
Pela configuração de um eu-lírico (explicitamente ausente na primeira parte, entre os poemas de 1 a 80) inseridob no livro no poema de número 81, o conjunto impõe uma reflexão sobre o eixo geracional contemporâneo do autor, desde os anos 70 à atualidade. Nessa parte, referências a recursos tecnológicos e sistemas de poder que medeiam as relações humanas no mundo globalizado são metaforizadas na imagem de um “chip” que o personagem possui implantado e do qual consegue se libertar. Articula-se esse processo de libertação composto nos 81 versos da segunda parte (9 poemas de 3 tercetos cada) com os 81 poemas da primeira parte.
Via de regra, o autor recorre à publicação de seus poemas e outros textos em meios digitais e eletrônicos. No caso dos poemas de “Venta não”, a totalidade dos poemas do livro é inédita. O autor entende que esta obra exige uma materialidade e um tipo de legibilidade que pode ser mais bem construída numa edição em livro. Uma das questões que “Venta não” propõe é a problematização do suporte e o tipo de manipulação que se pode produzir no livro através dos textos. Literalmente o livro se encerra no interior das páginas, exatamente no encontro das partes 1 e 2. Para que esse efeito se produza, não haverá numeração das páginas, apenas dos poemas, que serão apresentados em ordem crescente do 1 ao 81 e os demais em ordem decrescente, do 90 ao 82. Obtém-se com isso um jogo plástico que conduz à releitura e à ressemantização dos poemas em intenso diálogo entre si, e também com as epígrafes e os títulos – “Venta não” (livro); “Tudo muito sempre” (parte 1) e “O pai era um” (parte 2). Outro recurso material, através do qual se pretende buscar esta percepção e a valorização do aspecto plástico do projeto, será o acabamento do livro em capa dura, com reprodução na contracapa da mesma imagem presente a capa, indicando caminhos indistintos de leitura.
Projeto de publicação do livro Venta não,
documentos pessoais do autor.
Foi um livro gestado com tempo, cujo projeto, já com a primeira versão bem avançada, foi contemplado pelo Edital de Incentivo à Cultura – Lei Murilo Mendes, da FUNALFA, Juiz de Fora. Pude contar com a leitura prévia e crítica de muitos amigos, em especial a de Edimilson de Almeida Pereira e de Gilvan Procópio Ribeiro.
Edimilson e Gilvan foram os dois únicos colegas com quem tive a honra de dividir disciplinas oferecidas na pós, até 2020.1 Dividir uma disciplina ou contar com a leitura de um original são gestos distintos, mas que falam de um mesmo sentimento, o de confiança. Desde meu ingresso, o espírito de camaradagem e confiança entre os colegas da Faculdade de Letras marcou-me sobremaneira. Muitos seriam os nomes (todos, provavelmente) dos colegas da Faculdade de Letras da UFJF que gostaria de ver citados num memorial. A escolha pela narrativa fragmentária (e demasiadamente autocentrada, mais do que eu mesmo tenho suportado às vezes) escusa-me de parecer indelicado ao não mencionar detidamente a importância, em diversos momentos da minha vida profissional na UFJF, de colegas como Terezinha e Maria Luiza Scher, Maria Clara Castellões de Oliveira, Jovita Gerheim, Neiva Ferreira Pinto, Enilce Albergaria, entre as que já se aposentaram, ou de Silvina Carrizo, Ana Beatriz Gonçalves, Luciana Teixeira, Fernando Fiorese, Charlene Mioti, Fabio Fortes, Fernanda Cunha, Carol Rocha, entre colegas que ainda estão comigo aqui na luta. Mas injustiça maior seria não mencionar, com destaque os que alguma vez leram meus originais, Edimilson, Gilvan e Ana Paula, simplesmente pelo fato das afinidades que aproximaram nosso trabalho e permitiram a partilha dessa natureza.
Edimilson devolveu-me a boneca extensamente anotada, com o rigor e a elegância com que sempre o vi atuar. Os reparos de Edimilson valeram-me muito, tanto para corrigir quanto para reafirmar escolhas feitas no livro. Gilvan escreveu-me uma carta.
1 Em 2021 estou dividindo uma disciplina com Prisca Agustoni, o que não pôde acontecer antes por mero acaso. Já em 2012 organizara com essa querida colega um Dossiê da revista Literatura e Autoritarismo (http://w3.ufsm.br/literaturaeautoritarismo/revista/dossie09/apresentacao.php)