A literatura (e a arte em geral), mais de uma vez na história, já foi metaforizada como arma, como é o caso de muitos discursos hoje do RAP e da Literatura Marginal. Neste campo, as coisas podem ser mais complicadas. O estado de exceção permanente da sociedade brasileira nos obriga a tomar posições sociologicamente fortes e delineadas. Essa posição sociológica contamina, quase sempre, a posição estética. É quando a questão da opressão deixa de ser somente o tema para se tornar referente empírico. O realismo, como solução estética majoritária do romance moderno, é uma linha riscada no chão sobre a qual tentamos andar – costumo dizer para os alunos. De um lado temos o ficcional e no outro o documental. A literatura marginal tem demonstrado a tendência de andar nessa linha sempre com um pé no documental, daí a importância da experiência. Neste caso, se a guerra não for contra o patrão, o branco, o homem, etc., mas contra a mais-valia, o racismo, o machismo, etc., creio que ainda não estejamos pegando em armas através da literatura e do RAP, mas apenas preparando a familiaridade, o reconhecimento de uma linguagem que ainda vai explodir como uma bomba. Recorto aqui, com pequenas adaptações, um parágrafo de uma apresentação que escrevi como orientador de jovens escritores ligados à FLUPP. Um dos desafios para a oficina da narrativa curta é demonstrar, ao autor iniciante, a abertura proporcionada pelo sistema ficcional. Em termos teóricos, é o desafio de ensinar o poder da mimese. Muitas narrativas, quando apresentadas originalmente, colam-se à vida. Querem valer como testemunho. “Mas foi assim que aconteceu!” tem sido um frequente argumento de defesa de um texto recém-criado por um novo autor.
Talvez, como tem sido visto contemporaneamente, acreditam que a experiência legitima a escrita. Os encontros com a turma da FLUPP começaram com essa discussão. O texto poético ou ficcional deve ser intencionalmente manipulado para romper com o lugar instituído da realidade. Ele é capaz de expor e/ou denunciar não porque denuncia e/ou expõe “a vida como ela é” (aprendamos com a ironia rodriguiana), mas porque se articula a partir da realidade e institui um lugar distinto de existência. Diferentemente da notícia cotidiana, que se torna fraudulenta caso se distancie do fato que reporta, a ficção ganha tanto em verdade quanto mais se torna autônoma em relação ao fato. Diferentemente da verdade científica, que depende do empirismo experimental, ou da verdade religiosa, que se fundamenta na crença em registros míticos ou simbólicos, a verdade poética se instaura quando garante que os fatos e símbolos que manipula sejam avessos ao empirismo da experiência ou à cegueira da fé.
Como no paradoxo do falso mentiroso, a verdade do ficcional começa no fato de ser uma invenção. Ficamos num lugar discursivo onde se inventa, mais do que em qualquer outro, a liberdade, fora do arco dos poderes da notícia, da ciência ou da religião, que tanto regulam nossa sociedade. A experiência com novos autores tem me demonstrado que esse é um aprendizado difícil. Foi com foco nessa adesão à realidade que iniciamos e desenvolvemos o trabalho na FLUP.
A cada ano em que participo da banca desse processo de formação de autores, vejo confirmadas as convicções que me levaram, já lá se vão mais de 15 anos, a me dedicar à pesquisa e à atuação político-pedagógica junto aos fazeres literários das periferias urbanas. As vozes que surgem da periferia do Rio, muitas das quais nascem na FLUP, cumprem, hoje em dia, mais do que qualquer outra voz, o papel de oxigenar nossas artes verbais e de trazer à tona desafios críticos, éticos e políticos que se tornaram urgentes nos últimos meses. Esses desafios, que estavam se estabilizando como pauta normativa e condizente com os projetos em vigor, estão violentamente ameaçados e passaram a necessitar da resposta urgente de ações organizadas pelos grupos sociais, capazes de promover a necessária resistência aos desmandos e à violência que sistematicamente são impostos à nossa sociedade. Para isso precisaremos, mais do que nunca, daquela liberdade que a poesia e a ficção nos ensinam a inventar.
Dessa forma, entenderemos o poder da ficção como infenso à subalternidade, quando tivermos provas empíricas de que ele está mobilizando o discurso legislativo, ou o científico ou o religioso, ou todos ao mesmo tempo. Um exemplo recente disso deu-se quando uma ficção de Ferréz, sobre o assalto sofrido por Luciano Huck, é respondida com uma acusação judicial. Houve ali um deslocamento nos valores que a ficção pode potencializar, ao lado dos movimentos sociais.
Seria possível comparar esse fato, por exemplo ao processo sofrido por Flaubert no século XIX. Guardadas as diferenças contingenciais, é o mesmo tipo de deslocamento do imaginário para o mundo empírico que se deu do discurso ficcional para o jurídico. Em outra medida, temos isso quando uma ficção desloca-se para uma descoberta ou invenção científica (lembremos de Julio Verne).
Eis um fragmento de uma das minhas respostas na entrevista feita pelo Camillo. É o salto, na minha experiência profissional, da libertária, ainda que tardia, mudança de foco da crítica para a criação. De fato, nunca estiveram desarticuladas no meu trabalho de escritor. Faltava-me levar isso para a prática acadêmica. É o que faço a partir desse momento.