42- Ficção e reexistência

Em 2019 saio para o meu segundo pós-doc com um novo projeto, agora sim voltado para a de criação literária e a reflexão sobre essa prática em ambiente acadêmico, na área de Letras.

A formação do autor demanda a construção de uma sensibilidade no cruzamento entre a vertiginosidade da vida e da cultura contemporâneas e as possibilidades de operação com os elementos materiais que constituem e podem constituir o objeto literário. Dessa forma, pretende se desenvolver a pesquisa através do trânsito entre dois programas de pós-graduação, o de Literatura, cultura e contemporaneidade, da PUC-Rio, e o de Materialidades da literatura, da Universidade de Coimbra.

O projeto parte do reconhecimento de um deficit curricular dos programas das Faculdades de Letras, nos quais os estudos de literatura desenvolvem-se por meio da pesquisa acadêmica ou científica nas esferas da teoria, da história e da crítica. Diferentemente dos programas de Artes, em que a prática e a pesquisa estética colocam-se no conjunto das atividades acadêmicas, a escrita literária ocupa um lugar mais próximo do eletivo que do obrigatório nos currículos de graduação e majoritariamente o de extensão ou de pós-graduação lato sensu, nos de Letras. Há mesmo certa flutuação nos mecanismos disciplinares e disciplinadores dos Estudos Literários nas estruturas organizacionais das universidades. Ora o curso de Letras aproxima-se dos Centros de Artes, ora integra-se aos de Humanidades.

O escritor é um estranho-familiar na formação em Letras. Essa estranheza desdobra-se de mitos que precisam ser preliminarmente enfrentados. Utiliza-se aqui o conceito de mito tanto no sentido fantasioso, falacioso, decorrente de má fé e desconhecimento das leis científicas e naturais quanto no sentido de narrativas dinâmicas de imagens e símbolos que articulam o passado (arkhé), o presente e o futuro. São compreensões diferentes, mas ambas potentes na discussão sobre a criação literária, se aventarmos a hipótese de que o conceito teórico pode se articular com o senso comum. O primeiro é o de que o escritor contemporâneo advém prioritariamente das áreas de formação diferente da de Letras. Este resulta em dois outros: o de que o aprofundamento nas teorias e na crítica literárias afasta o sujeito de sua vocação de escritor e o de que aquilo que realmente conta para a formação de um escritor é a experiência de vida. Recente pesquisa quantitativa, realizada por Marcello Giovanni Pocai Stella, em tese defendida na USP, aponta que mais de 60% dos ficcionistas contemporâneos no Brasil, de um universo de 433 pesquisados, possui, pelo menos, formação superior (em torno de 30% graduação e 40% pós-graduação). Quando se observa esse conjunto de escritores por tipo de formação universitária, a esmagadora maioria concentra-se em Letras e Jornalismo. Em um universo de 354 autores, do qual 34% não indicam formação superior, 18,93% indicam Letras; 14,69%, Jornalismo; e, em terceiro lugar vem Direito com 5,08%1. Se parte significativa dos autores estão nos cursos de Letras e, considerando que essa mudança corresponde a uma realidade do momento contemporâneo, é de se esperar que as faculdades de Letras no país reestruturem seus currículos para incluir essa formação específica.


1Cf. STELLA, Marcello Giovanni Pocai. Literatura como vocação: escritores brasileiros contemporâneos no pós-redemocratização. Dissertação de Mestrado. USP, 2019. Disponível em https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-29032019-134526/pt-br.php. Acessado em 06/06/2018.

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