Este memorial é um trabalho de colagem. Apresento aqui textos que, como o título geral indica, considero periféricos a minha produção curricular, por um dos três motivos: a)porque não pertencem à esfera final da produção acadêmica, mas operaram como meios para viabilizá-la ou comentá-la, como correspondências, notas ou mensagens privadas; b)porque, pertencentes à esfera acadêmica, frustraram-se em seus objetivos finais e não se realizaram (ainda) como projetos ou não se publicaram como textos acabados; ou c)porque tangenciaram ou foram paralelos ao que tradicionalmente se compreende por “produção acadêmica”, aquela expressa em artigos, ensaios, dissertações, teses e outros textos que se associam a modo dissertativo.
Neste último item farei referência a uma considerável quantidade de textos de criação poética e ficcional, que nunca encontraram leito fácil nas pontuações curriculares. As memórias aqui evocadas acionaram mais o escritor do que o professor, pesquisador, mestre, doutor e pós-doutor em Estudos Literários. A falta de lugar para o escritor, no trabalho rotineiro e cotidiano da universidade, talvez explique o ritmo pendular, ou a falta de linearidade temporal desta
narrativa.
Grande parte do meu esforço recente, ao lado de mais colegas, desde 2016, quando estive na coordenação do PPG Letras – Estudos Literários da UFJF, culminou na implementação de uma linha de pesquisa voltada para a criação literária. Há dois anos essa linha existe. Já começo a orientar teses e dissertações que serão romances ou livros de poesia. Há questões ainda a equacionar sobre essa prática acadêmica, numa área que é bastante híbrida e oscila entre as artes e as chamadas ciências humanas. Creio que essa equação deva ser feita mais na cabeça dos pesquisadores do que na prática de escrita. Há um preconceito que leva a pensar a criação poética num lugar aonde o rigor e a pesquisa não comparecem. Isso pode acontecer na pesquisa científica também e há métodos de uma banca o aferir. Isso com certeza acontece nos memoriais, pois é difícil conter o fluxo com que se nos dá à reinvenção o tempo vivido.
A compreensão desse preconceito não pode deixar de lembrar a acusação de Gilbert Durand, à tradição do pensamento ocidental que se ocupou de relegar a imaginação à condição de “louca
da casa”.1 Antes de mais nada, gosto de lembrar uma passagem de Paul Vayne, que, instigado pelos movimentos estudantis que clamavam a imaginação ao poder, afirma desde sempre é ela
quem está no poder.2 No fundo, tratamos de e instituímos, neste ritual, algumas dimensões do poder. Isso posto, cabe-me adiantar que, contrariando a alternativa dos regulamentos vigentes sobre a possibilidade de apresentar para esse concurso uma tese inédita ou um memorial, transformei-a em aditiva. Como apêndice ao memorial, segue uma pequena obra de criação poética, Mercado de engenhos, e um ensaio que lhe é correspondente, inéditos, cuja discussão com a banca me será mais profícua. Afinal de contas, ao considerarem o leite derramado das memórias, o máximo que conseguirão é dizer palavras para o meu consolo, um gesto de amizade que, apesar de muito bem-vindo, não condiz com os interesses da esfera pública à qual esse concurso se relaciona.
Deixo-lhes, então, absolutamente à vontade para saltar as memórias e ir direto para a tese. Se assim não o desejarem, que, pelo menos, divirtam-se com as primeiras como se faz com um folhetim de papel-jornal, mas sejam duros com o livro que está por vir.
1 DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 197, p.21.
2 VEYNE, Paul. Os gregos acreditavam nos seus mitos? São Paulo: UNESP, 2014, p. 12.