comecei a me cansar dos programas culinários, aliás impecáveis, e aí foi o verdadeiro começo da minha derrocada. Tentei me interessar pelos debates sobre temas sociais, mas esse período foi decepcionante e breve: o conformismo extremo dos participantes, a desoladora uniformidade de suas indignações e seus entusiasmos chegavam a tal ponto que eu já podia prever suas intervenções não só em linhas gerais, mas até nos detalhes, na verdade ao pé da letra, os colunistas e os grandes depoimentos desfilavam como marionetes europeias imprestáveis, os cretinos sucediam os cretinos, felicitando-se pela pertinência e pela moralidade de suas opiniões, eu poderia ter escrito esses diálogos no lugar deles e acabei desligando em definitivo a televisão.
HOUELLEBECQ, Michel. Sertotonina. Tradução: Ari Roitman e Paulina Wacht.
Assim, toda a cultura universal não servia para coisa nenhuma, toda a cultura universal não trazia qualquer vantagem ou benefício moral, porque na mesma época, exatamente na mesma época, Marcel Proust, no final de O tempo recuperado , concluía com notável franqueza que não só as relações mundanas, mas também as de amizade, não tinham nada de substancial a oferecer, eram pura e simples perda de tempo, e que o escritor, ao contrário do que todos acham, não precisava em absoluto de conversas intelectuais, mas de “amores ligeiros com moças em flor”. Neste ponto da argumentação, permito-me substituir “moças em flor” por “jovens bocetas úmidas”; isso vai contribuir, creio, para clarificar o debate sem detrimento de sua poesia (o que há de mais bonito, mais poético, que uma boceta começando a umedecer? Peço que pensem com seriedade antes de me responder. Uma pica iniciando sua ascensão vertical? Isso pode ser defendido. Depende, como tantas outras coisas neste mundo, do ponto de vista sexual que se adote).
HOUELLEBECQ, Michel. Sertotonina. Tradução: Ari Roitman e Paulina Wacht.