“Eu falo de um espanto, estou atônito”, dispara Alexandre Faria
Por Marisa Loures
03/06/2022 às 08h00 – Atualizada 03/06/2022 às 07h33
Sempre tenho a impressão de que consigo entender mais o meu tempo ao ler a prosa e os versos do professor e poeta Alexandre Faria. “oourodooutro” (textoTerritório, 124 páginas), por exemplo, publicado em 2018, escancara barbaridades ocorridas no Brasil ao longo de muitos anos, como o Massacre de Eldorado dos Carajás, a chacina de Vigário Geral e o assassinato do cacique Nísio Gomes.
Agora, Alexandre lança “Mercado de engenhos”, obra que nos convida a respirar, (“Respire”, sugere o poeta ao final de cada bloco de poemas), mas que nos deixa em alerta o tempo todo. “Preciso estar muito bem preparada para encarar o que poeta tem a me dizer nas próximas páginas?”, penso eu quando folheio o livro pela primeira vez. “o afogamento sob cronômetro/ o eletrochoque das enchentes/ as bolas na gaveta/ a língua defumada/ servem-se de bandeja/ a ruptura das barragens/ a fissura das usinas/ os povoados que afundam/ os refugiados que se afogam/ é tudo servido no plantão/ dos trovadores/ dos choramínguas/ dos usurários/ da dor alheia/ dos campeões/ de audiência”, dispara o escritor, por meio de sua poesia.
“Mercado de engenhos” (138 páginas, TextoTerritório) já existia como projeto desde 2018, mas os conturbados anos de 2020 e 2021 foram decisivos para sua publicação. É nesse período que o professor da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora seguiu para um Pós-doutorado de seis meses na PUC-Rio e seis meses em Coimbra. No entanto, a pandemia de Covid-19 fez seus planos se frustrarem. Uma forte depressão também provocou uma mudança de planos. E o livro teve que esperar. Ao mesmo tempo, Alexandre escrevia “Vida suspensa”, um ensaio que nasceu como “uma tentativa de resposta ao momento que nós vivíamos”, confidencia o autor, que juntou os dois projetos em um só.
Dividido em três partes – “Natureza morta”, “Cera perdida” e “Made in China” —, “Mercado de engenhos” é composto por 32 poemas, além do ensaio, que “encerram uma reflexão sobre como o corpo que respira, dissolve-se e se esgota no fluxo das mercadorias”. E é sobre os “corpos de imigrantes, negros, mulheres, LGBTQIA+, indígenas e de todos que ameaçam o projeto branco e neoliberal pela simples manifestação de sua alteridade” que o poeta escreve.
“A pandemia me desmobilizou muito em relação ao trabalho, mas, ao mesmo tempo, trouxe muita questão para mim, porque, de certa forma, uma das coisas em que eu pensava no livro era nesta questão dos fluxos humanos no mundo, dos processos migratórios, da exploração do trabalho do imigrante”, conta o também autor de “Anacrônicas”, “Venta não”, entre outros livros.
Marisa Loures – “Mercado de engenhos” já existia como projeto bem antes de 2020, mas os acontecimentos de 2020 e 2021 foram decisivos para que ele fosse escrito e publicado. Gostaria que nos contasse melhor essa história.
Alexandre Faria – O livro já era um projeto, pelo menos, desde 2018. E ele foi surgindo como um projeto de poemas, um livro pequeno de poema em três partes: “Natureza morta”, “Cera perdida” e “Made in China”. Era um projeto que eu já imaginava com 30 poemas. Depois, ficaram 32, porque coloquei um prólogo e um epílogo. Saí de licença em 2019, e ele já estava lá para ser realizado durante meu pós-doc, que seria de seis meses na PUC-Rio e seis meses em Coimbra. A PUC-Rio tem um programa de Literatura, Cultura e Contemporaneidade que me interessa muito, e Coimbra tem um programa de Materialidade da Literatura, que também me interessa muito, e me interessava juntar essas duas questões para desenvolver a questão de formação do autor, da linha de pesquisa de Escrita Criativa. Então, pretendia fazer uma pesquisa teórica e também desenvolver um livro. Cheguei a Coimbra em fevereiro de 2020, e a pandemia começou duas semanas depois. Dei duas semanas de aula presencial na faculdade de Letras e no mestrado de literatura brasileira, e, na terceira semana, já estava em contingência. A pandemia me desmobilizou muito em relação ao trabalho, mas, ao mesmo tempo, trouxe muita questão para mim, porque, de certa forma, uma das coisas em que eu pensava no livro era nesta questão dos fluxos humanos no mundo, dos processos migratórios, da exploração do trabalho do imigrante, e tanto “Cera perdida” quanto “Natureza morta” já traziam essas questões. “Cera perdida”, sobretudo, que é a questão dos fluxos dos trabalhadores pelo mundo que eu vou assemelhando a essa cera que se perde dos trabalhadores que são soterrados nas obras em que trabalham. O fato de o vírus ter vindo da China e eu ter a terceira parte — “Made in China” — me mobilizou muito para pensar outras questões também. Não pelo fato de o vírus ter vindo da China, podia ter vindo de qualquer lugar, mas a própria maneira como alguns países — o Brasil, inclusive, com esse presidente que a gente tem, os Estados Unidos na época —, criaram uma imagem da China como o terror do mundo e, na verdade, existe um crescimento econômico muito grande da China, uma forma de ocupação do mundo, geopolítica mesmo, da China, de uma outra forma, diferente do que a gente conhece tanto do imperialismo e do expansionismo europeu quanto do imperialismo americano, e que eu acho que isso é uma questão para a gente hoje, inclusive a forma como a China ocupa o mundo com mão de obra, com trabalhadores. E eu tenho também toda uma relação com outra coisa que vem da China, e que pode ser muito importante para o mundo contemporâneo, que é uma certa tradição filosófica, científica, astrológica, religiosa, que são os saberes taoistas. Existe uma medicina taoista também. Então, acho que muita coisa pode ser cuidada, e o livro fala, em alguma medida, de uma forma de cuidado também, a partir desses conhecimentos. Isso é algo que é “Made in China” também e que está por trás da minha ideia de construção do livro. Aí, com a pandemia, comecei a escrever um ensaio, que está no meio do livro, que busca responder, sobretudo, a esse momento. Aí, nesse momento, passei por uma depressão, fiquei de licença médica, sem conseguir trabalhar, sem fazer nada. Aí o livro ficou um pouco de molho, o ensaio também, e, quando retorno, retorno justamente pelo ensaio, que é uma tentativa de resposta ao momento que nós vivíamos. E também não deixa de haver no ensaio um diálogo com o livro, até, inicialmente, involuntário, porque eu estava com o livro na cabeça e escrevendo o ensaio e é claro que as questões teóricas que estão informando a poesia vão aparecer também no ensaio. Então, houve essa aproximação. Quando eu vou ao Confúcio no final do ensaio, já estou voluntariamente querendo isso. Mas, quando faço a reflexão sobre still life, a forma como se chama natureza morta em inglês, eu não quis voluntariamente citar os poemas. Essa questão da natureza morta está na minha cabeça desde quando surge na televisão o caso da criança síria que aparece morta numa praia da Grécia. Essa imagem me remete à ideia de natureza morta. Desde então, estou pensando nisso, nessa correlação. A natureza morta como um gênero da arte e da pintura e como é que existe um interesse pelos corpos inertes, pelos corpos mortos, pelos acidentes, pelas catástrofes que a mídia explora. É tanto que um poema que termina a parte “Natureza morta” leva o nome daquele fotógrafo que tirou uma foto de uma criança semimorta, Kevin Carter. Ele tirou uma foto de uma criança quase morrendo e um abutre do lado. Se não me engano, nos anos 1990. Isso está em discussão ali. Estou pensando em qual seria a relação entre o interesse que há pelas pinturas de natureza morta, principalmente a natureza em que há pedaços de animais, os peixes, as carnes penduradas, e a exposição desses corpos. Aí fui investigando, mas é uma investigação poética, em que não vou somente a uma bibliografia teórica, porque, na verdade, nem existe, mas a uma observação de como isso é produzido. E não estou falando só da mídia jornalística não, até a própria poesia, o quanto que a poesia se vale da miséria humana para se enriquecer.
– A orelha do livro traz os possíveis significados do título. “Mercado de engenhos” pode nos levar a pensar nos engenhos de cana de açúcar do Brasil colônia, quando os negros tinham seus corpos escravizados. Mas também pode remeter à engenhosidade, criatividade do homem, que pode mercantilizar os corpos. A ideia é de que os corpos são sempre mercadoria? Não há escapatória?
– O corpo é mercantilizado quando ele é alienado, quando ele atende ao trabalho que não vai resultar num capital para o próprio corpo, mas vai resultar num lucro para o explorador daquele corpo. Se há escapatória disso, eu não sei, mas, para o corpo, há uma grande escapatória, que é o gozo, que é o prazer. Justamente uma despesa e uma energia que é gasta gratuitamente. Pode ser até na ordem do trabalho, mas é um trabalho gozozo. Acho que, sobretudo, precisa se pensar em uma dimensão do trabalho em que ele seja efetivamente compreendido como a produção de bens sociais e não a produção de capital no sentido até da individualidade, sabe? A pessoa que vai trabalhar para ter uma casa, vai trabalhar para ter um carro. Qualquer trabalho, ele atende a uma comunidade, atende a uma sociedade, ele é necessário por isso. Então, essa consciência é fundamental, talvez, para que as pessoas comecem a aproximar o trabalho da experiência gozoza, o trabalho do prazer. E isso é fundamental, inclusive, num momento como este em que se vive muito a experiência do autoempreendedorismo. As pessoas começam a fazer o que acham que vão fazer de forma liberal, de forma autônoma e que vão lucrar com isso. Mas de preferência que realizem dentro de uma trajetória humana. Isso está sendo mais presente hoje em dia. As pessoas falam mais desse lugar, de até largar certos trabalhos que eram assimilados como obrigações e assumir outros que se originam no desejo. A presença do desejo na hora do fazer é fundamental, acho que isso transforma os corpos.
– O leitor se depara com a palavra “respire” em alguns momentos do livro. Quando o abri pela primeira vez, não sabia se era um alerta para quem iria começar a leitura e aí precisaria estar preparado para o que viria pela frente ou se você tinha a intenção de apenas tranquilizar o leitor…
– Eu não pensei exatamente nisso. O “respire” introduz cada parte em que coloco o ensaio. É uma relação que eu imagino que exista entre a prosa e a poesia. A poesia sempre é um tipo de texto que circula menos que a prosa. Sabemos que os romances, os livros de autoajuda em prosa, tudo isso interessa muito mais às pessoas do que a poesia. Até a poesia de autoajuda é menos lida. Então, pensei no texto em prosa como um lugar de respiro para o texto em verso. Uma das questões sobre as quais tenho refletido muito é em produzir livros de poesia que fossem híbridos, que pudessem chamar outro tipo de leitor para a leitura da poesia. Mas é claro que, por trás da ideia de “respire”, está isto que eu acho que é transgressivo no princípio da meditação, que é um saber que a gente vai receber também da China, mas não só, porque é um saber que está em várias culturas ancestrais, mas que nos permite permanecer num tempo, permanecer no aqui e agora, concentrar na respiração e, de certa forma, aprender a evitar qualquer outra demanda, mental ou espiritual. Então, na medida em que você consegue ter um tipo de tempo que te permita parar antes de aceitar qualquer impulso, isso me parece um tempo mais do que necessário para hoje em dia, senão a gente morre de trabalhar e não sabe o que está fazendo. Então, passa por isso. Mas, ao mesmo tempo em que eu pensei em colocar “respire” em cada entrada do ensaio, me veio na hora o “Pneumotórax”, do Bandeira, que é o médico examinando: “Diga trinta e três.Trinta e três… trinta e três… trinta e três…Respire.” E aí o poema tem um pontilhado, o próprio poema pede uma respiração ali na hora. E, depois, diante da conclusão do médico, ele pergunta: “Doutor, dá pra tentar um peneumotórax?” E ele fala: “No seu caso, é melhor tocar um tango argentino.” E aí fico com esse “respire, respire, respire” e termino com “melhor tocar um tango argentino”. Nem uso tocar, mudo o verso do Bandeira para “dançar um tango argentino”, porque quero trazer esse corpo também. Mesmo que esteja nas últimas, dançar é bom, é estar com o corpo no tempo, no presente.
– Trago aqui uma questão levantada pelo professor João Camilo Penna no prólogo do livro: “Respire: dizem os ensaios. Mas por que não as poesias? Seriam elas asfixiantes?”
– Desejo que ela seja. Nem toda poesia vai ser, né? Acho que busquei um livro, pelo menos nesse início, nessas duas primeiras partes, de uma poesia que não está vendo muita saída para as coisas. Não está vendo muita ordem, que está contemplando, de repente, uma desarmonia grande no mundo. Então, as duas primeiras partes me falam de uma poesia… Eu não sei se “asfixiante” seria a palavra, mas de um desalento, de uma poesia desencantada, de uma poesia que quer deixar o poeta e o leitor desencantados. Uma poesia que fala de si mesma enquanto objeto de produzir a mais valia dos corpos. Tem um poema em que eu falo da questão da lama de Mariana, de Brumadinho e daquela lama que vai ser servida como uma canção de protesto dos trovadores. Tudo vira mercadoria. A primeira pergunta que você me fez: “Vê alguma uma saída?” Para mim, a saída vem de outro princípio, de harmonização que passa por uma integração com a natureza e a compreensão de um mecanismo cíclico que é refratário ao mercado, que existe a despeito de qualquer mercado, que é a vida, que ao mesmo tempo em que ela existe, ela deixa de existir.
– Quando falo da falta de saída, é porque até quando você menciona que o livro “reflete também a criatividade, a engenhosidade humana”, você cita que “esta pode ser usada para tornar mercantilizável o nosso corpo”. Segundo você, isso acontece até com relação às técnicas de meditação, ou seja, parece-me que não há escapatória nem quando pensamos no lado bom das coisas.
– Tem que ter cuidado, tem que saber por onde entra. Acho que qualquer um que oferecer uma cura fácil, uma saída, uma solução prática — em dois meses trago seu amor de volta — é um charlatão. A gente tem que reconhecer a dificuldade do próprio caminho e ir fazendo as escolhas.
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– Parece-me que seu texto flui sem grandes dificuldades…
– Comecei a pensar nisso em 2015. Então, é muito tempo pensando e buscando e, até mesmo quando escrevo e monto um poema, vou procurando formas, procurando palavras. Se você pegar a prova impressa do livro e o livro que você tem nas mãos, vai ver que mudei coisas. O ensaio, eu diria que tem uma mão frouxa ali. A poesia me dá muito trabalho. Por exemplo, tem um poema que está na parte “Natureza morta” em que vou falando dos vários usos que são feitos do processo de exploração da notícia, de exploração do boi morto, de exploração do trabalho, na construção da arte. Eu já tinha o poema feito e, há pouco tempo, eu revi o “Apocalypse now”, do Coppola. Fui dar uma lida também sobre o filme e descubro que a produção dele pagou uma fortuna para o Ferdinando Marcos, que era ditador das Filipinas não só para usar o território onde foi filmado, mas também para usar helicópteros que tinham lá, que eram coisas de resto da Guerra do Vietnã que ele tinha comprado ou herdado dos Estados Unidos. Então, o próprio filme é um mercado de engenhos, sabe? É uma engenhosidade que financiou um ditador. Aí falei. Tenho que colocar isso no poema. Aí, voltei ao livro e vi em que poema colocaria isso. Os primeiros poemas do “Cera perdida” parecem poemas totalmente largados, soltos, escrevi à vontade o que eu queria, mas tentei construir plasticamente a ideia de cera perdida dentro de um molde com um poema metrificado. Então, dentro dele tem um poema metrificado que depois eu preenchi. O poema é como se fosse a peça de cera dentro do molde que vai se perder. Isso me deu um trabalho danado. Vou procurando e tentando compor. É bom quando flui, quando o leitor consegue ler assim, ou seja, o leitor tem a impressão de que está fluindo, de que foi fácil escrever. Mas não foi. Tem um capítulo do “Anacrônicas”, meu primeiro romance, que tem uma parte em que eu quis fazer assim: isso precisa ser um fluxo de consciência. Mas eu não fiz um fluxo de consciência. É um texto totalmente louco, mas ele está regulado ali por um critério. Eu fui ao dicionário e procurei todas as palavras na letra “A” que começavam com o prefixo “Ana” e fui juntando os significados que o dicionário dava a essas palavras nesse texto e fui sobrepondo esses significados. Ficou um texto totalmente solto, mas não foi. Ele nasceu de um processo. Eu fico inventando processos. Eu quero até que a forma seja conteúdo.
– Quando cita Aldir Blanc, que passou por graves dificuldades financeiras, você traz discussão do escritor que perde o lastro financeiro porque não está nos holofotes. Hoje, o que vale são os cliques nas redes sociais. E aí você também toca na questão da mudança na recepção da leitura. Antes, era o leitor e o livro, sozinhos. Agora, existe a mediação das redes. E aí o próprio escritor se promove, já interage ali com o leitor e as editoras acabam saindo de cena. Você pode falar como escritor, editor e professor. Como lida com todas essas questões?
– Acho que lidava bem com isso, lidava com alguma tranquilidade nessa esfera de postar os poemas, e interagir nas redes, de tudo. Depois do fenômeno das fake news, da coisa das bolhas, a primeira parte do livro que você falou que realmente não tem jeito, é uma sensação minha, fui muito imbuído de uma descrença nessa forma de interação pública que temos hoje, uma vez que existe um limite que é dado ali pelo algoritmo do processo. Você vai falar sempre com os mesmos. E você encerra a possibilidade de uma discussão pública e, para mim, a literatura é isto, é trazer a possibilidade de se discutir publicamente alguma coisa. Então, o meu silêncio nas redes veio um pouco dessa descrença, isso aqui está ficando sempre entre os mesmos. Antes, a rede social para mim era um lugar de encontro entre amigos. Eu lidava bem com isso. Hoje, eu quero pensá-la como uma possibilidade de furar bolhas, de chegar a outros lugares e não apenas entre meus amigos. E estou aprendendo, vendo como lidar com isso. Acho que até a depressão teve a ver com esse silêncio e com essa descrença.
– E você lamenta essa mudança que aconteceu nessa relação entre escritor, leitor, livro?
– Não lamento no sentido de que era melhor assim e está pior assim. Não. Mas percebo que houve uma transformação e que certos trabalhos ou certos papéis não podem mais ser assumidos unicamente. Tem uma entrevista da Clarice Lispector, que é aquela única que ela dá para televisão, em que perguntam para ela assim: “O que você acha que o escritor brasileiro deve fazer?” Aí ela responde: “Falar menos e escrever mais.”
– E hoje o escritor está teclando muito…
– E esse teclar está na ordem do falar e não do escrever. Então, quando pego a figura do Aldir, acho que é exemplar porque, durante o momento áureo da música popular brasileira, muitos compositores que não eram cantores, letristas sobretudo, poetas, sobreviveram, e sobreviveram muito bem, dessa função. Os direitos autorais chegavam até eles. É diferente falar de um cara como Caetano Veloso ou Chico Buarque, que compõem, fazem a canção, fazem a letra e vão lá na frente cantar, de um cara como Aldir Blanc, um Fausto Nilo, compositores, letristas, que apenas faziam aquele trabalho. Na medida em que o spotify e outros streamings remuneram a música tocada, você não sabe nem quem é o autor daquela letra, ou quem é o autor da música. O nome lá é da pessoa que canta. Eu chamo a figura do Aldir, porque ela é emblemática no processo público da vida há uns anos. Os amigos estavam fazendo shows em favor dele, foi uma série de shows cuja renda foi toda para ele, porque ele não estava mais sobrevivendo de direitos autorais como viveu a vida inteira. Então o Aldir é essa figura que publicamente passa por isso, mas ele também me interessa como emblema dessa situação que muda. Agora, eu pessoalmente, nunca vivi de direitos autorais, sempre fui professor. A minha perspectiva foi junto com Oswaldo (Martins, editor da TextoTerritório), até muito mais de empreender, de fazer a editora e tudo, e isso já me coloca nesse outro lugar. Então, não sou nostálgico de uma coisa que não vivi, mas também não deixo de ser crítico desse novo lugar que se coloca.
– Quando você lançou “oourodooutro”, escrevi que sua poesia era uma resposta aos tempos atuais. Tenho a impressão de que tudo que você escreve, inclusive academicamente, é uma resposta ao seu tempo…
– Quando falei do “oourodooutro”, percebi que aquela poesia que eu publicava na rede desde os anos 1990 não tinha perdido a validade, ainda servia para responder aquelas coisas. O “Mercado de engenhos” indaga a partir deste lugar: “olha, isso aqui, que eu acho que está respondendo, não está respondendo. Não está chegando a lugar nenhum, não está fazendo nada.” A gente não tem condições de mensurar uma recepção, acho que essas agências de pesquisas, por exemplo, podem dar um resultado de que o Lula está não sei quantos por cento à frente do Bolsonaro, mas a gente pode ser surpreendido porque os meandros disso tudo são irrastreáveis. A gente está saindo de uma época em que um livro poderia ser irrastreável se ele fosse difundido, publicado, traduzido e circulasse pelas mãos das pessoas, e aí ele se tornava um objeto irrastreável, hoje a gente tem uma percepção perfeita do rastreamento que é possível fazer de um poema que eu posto ao mesmo tempo em que a gente não consegue rastrear o que os robôs fazem com a informação. E acho que eu lanço, com este livro, muito mais uma pergunta ou muito mais um certo espanto diante de uma condição do que uma resposta a qualquer coisa. Eu falo de um espanto, estou atônito.
“Mercado de engenhos”
Autor: Alexandre Faria
Editora: TextoTerritório (134 páginas).
Marisa Loures
Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.