14- Do estruturalismo dos pobres ao cosmopolitismo do pobre

De fato, é menos pela criação poética e ficcional e mais por meio da produção acadêmica que existe matéria fora dos parênteses para desenvolver este memorial. Mas se começo evocando o adolescente não é tanto para destacar que a atipicidade e a longa duração da graduação tenham-me garantido certa solidez no que se pode considerar uma formação geral em Letras: estudei as clássicas mais do que o normal para formação em literatura, e, além das vernáculas, francês e inglês; o que, de fato, me fez reencontrar o adolescente que ingressou na FL-UFRJ em 1987, foi o pitoresco susto e até certa ingênua indignação que ele manifestou ao deparar pela primeira vez a expressão “ciência da literatura”, provavelmente estampada numa placa na porta de um departamento.

Esta lembrança conduz ao primeiro dos dois termos, destacados no título desta parte, que, penso, podem emoldurar a abordagem propriamente acadêmica deste memorial, pelo menos os 31 anos entre 1987 e 2018. Farei, com essa moldura, uma generalização necessária para sustentar uma narrativa que poderia ser eficiente se estivesse em tópicos, como itens de um relatório de produção acadêmica. O que tentarei, além da moldura, é buscar as entrelinhas do relatório.

O estruturalismo dos pobres evidentemente refere-se ao raivoso texto de José Guilherme Merquior publicado originalmente no Jornal do Brasil de 27 de janeiro de 1974. A indignação ingênua daquele adolescente assemelhava-se anacronicamente à de Merquior. Ambos reagiam à crítica de vocação estruturalista e semiótica, pois percebiam naquilo séria ameaça a posições consolidadas e concepções cristalizadas de literatura e do literário. E a aproximação pára por aí; é claro que não havia a mesma ingenuidade na posição radical e até agressiva de Merquior, que já foi posta no seu devido lugar por percepções críticas mais contemporâneas.

O fato é que ainda ingressei numa Faculdade de Letras com forte vocação estruturalista e semiótica, cuja natureza afastava (e assustava) o aluno. “Quem tem medo da Teolit?” era a pergunta subjacente à capa multicolorida do livro (que na época um dos colegas achara na seção de infantis de uma livraria) Como curtir o livro – O que é Teolit?, de Rogel Samuel, então adotado entre os calouros. O coloquialismo e a simplificação deste livro, aqui tomado apenas como um exemplo, denunciavam certa inacessibilidade ao tema por parte dos egressos do ensino médio. Já estávamos no primeiro governo civil desde o golpe de 64, mas as leituras sociológicas ainda eram bastante secundárias em relação à abordagem imanentista.

Fui levado, lembro-me bem, naqueles períodos iniciais de Teolit, a destrinchar a sintaxe funcional de contos, como “Fita verde no cabelo”, de Guimarães Rosa, ou do romance Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, fazendo o levantamento de funções, catálises, índices e informes, bem de acordo com o modelo barthesiano. Ao romance de Ubaldo voltei, estudando-o na perspectiva das relações entre ficção, história e identidade, quando cursava o mestrado na PUC-Rio. Comparo, hoje, os dois momentos, as duas leituras e percebo que, se a segunda abordagem foi capaz de amadurecer minha visão de mundo e aguçar minha perspectiva crítica com relação à identidade cultural brasileira, tema que viria a retomar no doutorado, não resta dúvida de que a árvore genealógica da alminha do povo brasileiro, que produzi na década de 80, constituiu exercício primordial para afinar meus instrumentos de leitura.

Tenho hoje meus alunos de graduação como parâmetro. Percebo, em grande parte deles, completa falta de habilidade para manipular signos, símbolos ou referências na leitura do texto literário. Muitos temem o poema mais que o próprio inferno. Em geral, é cômodo atribuir as deficiências à própria formação geral do aluno, que, diferentemente daqueles que ingressavam há mais de vinte anos, não nos chegam leitores. Por isso, é de se entender que a manutenção do rigor estruturalista estivesse ameaçada. Faço agora um esforço para abstrair o preconceito e o elitismo que José Guilherme Merquior destila em seu artigo, e tento me convencer de que o crítico atirara no que vira e acertara o que não vira. Não era por ameaçar a formação ampla e erudita que o “estruturalismo dos pobres” merecia críticas. Eu mesmo fui aluno de dignos representantes da formação beletrista, que passaram ao largo da voga estruturalista em aulas sublimes de informação e erudição, mas tão monológicas quanto a dos teóricos.

O que acontecia era que: 1) ambas as tendências, ou seja tanto o eruditismo de Merquior quanto o positivismo de algumas amarras estruturalistas, se tornavam esotéricas para alunos de letras não iniciados na leitura; 2) ambas eram íntimas e, no fundo, interdependentes; em geral, o esquema teórico, que alunos compreendiam com dificuldade, recorria ao exemplo de obras literárias que o mesmo aluno não lera; 3) finalmente esse conjunto de fatores redundava em aulas quase sempre monológicas que ampliavam a distância entre o aluno e a literatura.

Acresce que o verdadeiro programa de massificação do ensino superior (não aquele que Merquior temia) ainda estava por vir e veio nas mãos da iniciativa privada através de projetos públicos como o PROUNI. Era de se esperar, portanto, que esse contexto das faculdades de Letras criasse campo propício para o advento e a disseminação dos Estudos Culturais. Se compararmos essa realidade (de alunos fundamentalmente formados pela comunicação de massa, pertencentes a outros grupos sociais, cujas referências culturais se distanciavam dos cursos de letras, historicamente elitistas) com o contexto do surgimento dos Estudos Culturais na Inglaterra dos anos 50, no ambiente da alfabetização de adultos, pode-se compreender isso melhor.

Guardadas as proporções relativas a lugar e época, especialmente quanto ao fato de que os Estudos Culturais, nessa origem, mantinham íntima relação com o pensamento de esquerda que se renovava e hoje se vincula mais aos movimentos multiculturais, aqui inseridos pelos modelos estadunidenses, não se pode perder de vista a semelhança entre as realidades sociais que obrigaram os estudiosos de literatura a expandir seu olhar ao universo cultural mais amplo.

É nesse contexto que chego ao termo que configura a moldura final deste panorama de época, “O cosmopolitismo do pobre”, é um texto de Silviano Santiago, publicado originalmente no segundo número da revista Mergens/margenes (2002) e posteriormente no livro homônimo, especialmente atento à crítica cultural e às mudanças de paradigmas do próprio multiculturalismo em face da economia de mercado globalizada.

“O estruturalismo dos pobres” e “O cosmopolitismo do pobre” não são, obviamente, textos absolutos para emoldurarem parte significativa de um percurso acadêmico, ou mesmo uma época. E, mais que isso, são perspectivas metodologicamente díspares, embora guardem entre si a condição periférica, colonizada, da sociedade brasileira, bem demarcadas na locução adjetiva que delimita seus temas. Mas se o primeiro atribui um sinal negativo a esta condição, o segundo propõe, em termos gerais, melhor proveito de nossa experiência periférica.

Não se quer também, defender que o segundo texto faça uma citação do primeiro. Se, aqui, estão próximos, isso deve-se única e exclusivamente à idiossincrasia que através desse memorial pretendo revelar, num movimento de resgate e autocrítica das atividades acadêmicas e laborais. No entanto, pretendo não rever apenas a trajetória de pós-graduando, pesquisador e professor de literatura, no limite dessa idiossincrasia, mas compreendê-la à luz das mudanças que as faculdades de Letras experimentaram nas últimas décadas. Acreditando que esta reflexão demonstre o quanto o processo formativo municiou, pelo menos a mim, da (auto)crítica que aprimorou politicamente a prática dialógica da pesquisa e do magistério em literatura. Esforcei-me durante grande parte de meu trabalho, por trazer para os estudos literários autores oriundos das periferias urbanas brasileiras, como as em que eu vivi e trabalhei no Rio de Janeiro, chegar ao “Cosmopolitismo do pobre” é chegar a uma reflexão sobre minhas contribuições para os estudos da literatura marginal-periférica.

Um longo tempo dedicado a uma pesquisa, marca-nos naquele lugar. E quando defino que 2018 é o ano de chegada desse emolduramento, não quero criar antolhos para o fato de que as demandas para trabalhos relacionados aos estudos culturais, digamos assim, se encerrarão, mas pretendo reafirmar que, a partir de 2019, com o projeto de pós-doc “Ficção e reexistência”, desejo deixá-los na periferia de minha visão, para observar frontalmente questões relacionadas à prática e (por que não?) o ensino de criação literária nas Faculdades de Letras.

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