A sugestão final do livro Todas as cidades, a cidade, de Renato Cordeiro Gomes (Rocco: 1994, p. 162), é um convite à leitura de textos e cidades: “Há milhões de histórias na cidade nua. Estas foram algumas delas”, afirma o autor após analisar as relações entre literatura e experiência urbana na modernidade e, especificamente, na cidade do Rio de Janeiro.
Em Literatura de subtração, como bom orientando, aceito o convite para estabelecer a leitura crítica de outros textos em que a relação entre literatura e experiência urbana se faz presente. A opção é por autores contemporâneos em que se percebem, inquestionavelmente, problematizações da experiência do homem nas grandes metrópoles, de forma que seja possível pontuar alguns aspectos sobre a preponderância do espaço urbano na prosa brasileira a partir da década de 70. Essa preponderância deve-se, não só ao desenvolvimento urbano promovido no período, mas, sobretudo, aos problemas advindos desse desenvolvimento, que, em cidades já superdesenvolvidas e populosas, tornam-se difíceis de se omitir: o desemprego, a falta de habitação, a violência, a ascenção do individualismo, com a solidão e o isolamento humano são algumas das questões que vêem à tona nas grandes cidades como que frustrando a utopia de uma cidade moderna, racional e funcional.
Todas essas questões vêm tratadas na primeira parte do livro, intitulada “Detetor de Ausências”, momento em que se caracteriza a tendência predominantemente urbana dos autores que serão estudados na segunda parte. Esta tendência é, inclusive, situada na tradição urbana da literatura brasileira, com uma leitura ilustrativa do romance Noite, de Érico Veríssimo.1 Ainda na primeira parte, um ensaio sobre Roda viva, peça de Chico Buarque, montada em 1968 por José Celso Martinez Correa, estabelece o panorama das transformações culturais pelas quais passou o país no final da década de 60 e que são fatores determinantes da nova tendência literária, que denominei literatura de subtração, numa tentativa de aproximação do que Candido nomeia “uma literatura do contra”, em sua análise “A nova narrativa”.
Dos diversos autores contemporâneos que fazem do cenário urbano o espaço de sua ficção, foram escolhidos três: Rubem Fonseca, Caio Fernando Abreu e Chico Buarque. Procurando estabelecer o código de leitura comum aos três, cheguei ao conceito de distopia – lugar, estado ou situação hipotética, em que as condições e as qualidades de vida são penosas, segundo o Dicionário Webster. São as distopias urbanas os fatores que se mantêm enquanto determinantes e sustentadores da convivência humana nas cidades, pois o projeto coletivo e utópico de uma vida ideal e harmônica já não tem mais lugar na urbe sem face e sem nome sobre a qual os autores compõem sua escrita.
Desse contato com as questões relacionadas ao pós-moderno, não perdi uma certa indignação e a vontade de continuar, ainda que sem plataforma política muito clara, a recuperar algo da denúncia que poderia estar presente nas obras estudadas. Renato bem o nota na apresentação escrita para o livro e antecipa a retomada de um tema de Lefèbvre que viria mais recentemente a andar em voga pelas mãos de David Harvey:
livro com que Alexandre Faria se inscreve numa linha de preocupações que vem marcando este final do século XX, século por excelência da afirmação do urbano, da luta pelo direito à cidade (para usar a velha expressão de Henri Lefèbvre). Como aconselha Marco Polo naquele livro de Calvino, Alexandre empreende uma tarefa arriscada, que exige atenção e aprendizagem contínuas, ou seja, ler as representações da cidade na literatura brasileira contemporânea percebendo aí a utopia em ruína e os traços infernais das megalópoles em que vivemos, sem, entretanto, abrir mão da capacidade de indignação e das possibilidades do presente, ainda que precário. A procura de uma operação poética para ler as cidades ficcionalizadas pela literatura é aqui revestida não só de preocupação política, mais sobretudo de postura ética.
23 anos depois, sou capaz de achar que Literatura de subtração ainda tem leituras importantes dos ficcionistas sobre os quais se debruça. Com algum ajuste caberiam em publicações específicas, quer sobre Rubem Fonseca, Caio Fernando Abreu ou Chico Buarque. A armadura em torno da qual as leituras se organizam não me convence mais. Na verdade, e espero que esse memorial o demonstre, o efeito de totalidade e unidade construído pelo discurso acadêmico não tem os atrativos que me fariam, hoje, abandonar o fragmento e a colagem. O exercício de estabelecer elos e entregá-los ao leitor soa-me equivocado e, de certa forma, redutor. A ideia de uma literatura de subtração, que é, até, muito convincente e caberia para pensar a obra de outros nomes como cujas obras são Sérgio Sant’Anna, João Gilberto Noll, Roberto Drummond, Inácio de Loyola Brandão prende-se a certa sistematização periodística que acabaria por dificultar a percepção dos cortes econômicos, culturais, raciais e de gênero que os estudos baseados em princípios de periodização empreendem.
Se eu voltasse hoje, aos autores que estudei em Literatura de subtração, faria com o intuito de 1) rever e reunir num volume todos os estudos que já fiz sobre a obra romanesca de Chico Buarque, a saber, os estudos sobre Estorvo e Benjamin, presentes na dissertação de mestrado, outros dois artigos publicados em lugares distintos sobre Budapeste e Leite derramado. Seria capaz ainda de recuperar anotações inéditas, de aulas e palestras sobre os dois últimos romances do autor, bem como uma leitura de seu cancioneiro; 2) Rever e escrever um texto, bem mais extenso que um artigo, que poderia resultar num pequeno livro ou num meio livro caso eu viabilizasse alguma parceria, exclusivamente sobre Rubem Fonseca.
No final dos anos 90 eu tinha mais coragem (e fígado) para enfrentar a passagem das grandes dores que atravessam a obra de Caio Fernando Abreu. Ele está sempre na bibliografia de meus cursos de literatura contemporânea, já orientei sobre Caio uma dissertação de mestrado, mas talvez eu só voltasse a seus escritos se me dedicasse a novos projetos de estudo, fosse o de conhecimentos esotéricos como Astrologia e I Ching, ou o estudo das relações de gênero e sexualidade, para pensar pontos e contrapontos que a obra de Caio estabelece com as questões LGBTIQA+, tão em voga, mas sobre as quais meu conhecimento é muito rasteiro.
Não descarto que tanto o que tenho sobre Rubem Fonseca, quanto sobre Caio, caibam num outro volume – coletânea de ensaios sobre literatura brasileira contemporânea, que incluiria outros trabalhos e estudos que, após o mestrado, continuaram no doutorado.
1 Devo-me, até hoje, aprofundar essa leitura e articulá-la com a do romance Os ratos, de Dyonélio Machado. Ambos, Érico e Dyonélio, dois “radicais urbanos”, no dizer de Candido, na prosa modernista brasileira ainda essencialmente voltada para o ambiente rural ou regionalista.