De Literatura de Subtração derivaram as reflexões que encaminhei para o Doutorado. O Brasil presente: construções-ruínas do imaginário nacional contemporâneo, tese de doutorado que defendi em 2002, retoma, como ponto de partida, uma das faces do discurso literário nacional: a atual existência de uma literatura urbana, significativamente representada por um conjunto de obras das quais o tema identidade nacional, entre outros, é subtraído. A ausência de representações nacionais de base unificadora, verificada nesta literatura de subtração, representa uma ruptura com certa tradição da literatura brasileira, que, desde as origens, pode ser mapeada através de uma série de obras cujo objetivo era a própria fundação e a continuidade daquela tradição. Normalmente identifica-se a origem desse esforço fundador no Romantismo e compreende-se que, ao longo do Modernismo, ele foi submetido a diversas tensões que partiram, sobretudo, do binômio tradição/ruptura, instaurando uma dialética na produção cultural de nossos modernistas: a necessidade de alinhar-se à estética de vanguarda e o compromisso com a tradição em nome de uma identidade nacional. Produções como Iracema (1865), de Alencar; Triste fim de Policarpo Quaresma (1911), de Lima Barreto; Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, ou as correntes nacionalistas do modernismo; bem como Quarup (1967), de Antonio Callado ou Viva o povo brasileiro (1984), de João Ubaldo Ribeiro seriam apenas alguns pontos cruciais dessa trajetória, títulos mais óbvios de um cânone a que recorremos para exemplificar essa espécie de eterno retorno ao topos identidade nacional.
Pode-se levantar como hipótese que a subtração deste tema se deva à incompatibilidade entre dois aspectos: por um lado a fundação de uma identidade nacional instaura necessariamente um tempo histórico ou mítico; por outro lado é pouco provável que este tipo de eixo temporal se estabeleça no espaço urbano, necessariamente fragmentado. A velocidade, traço do homem moderno, submete-o a seu tempo. A vida se comprime no cotidiano – instância que o geógrafo Milton Santos assimila como a quinta dimensão do espaço.1 Trata-se de um tempo espacializado, no qual a velocidade do processamento das informações é capaz de tornar simultâneos os fatos e suas representações.
O trabalho buscou descobrir caminhos que demonstrassem como explorar as tensões entre a produção cultural contemporânea e a tradição fundadora da literatura brasileira. Como pensar a identidade nacional brasileira hoje? É possível desenvolver teoricamente uma abordagem sobre os limites da literatura e a dimensão de sua capacidade representativa, ou mesmo, sua comunicabilidade, no domínio das produções culturais pós-modernas e globalizadas? É possível admitir que esses limites teriam promovido um deslocamento da temática identidade nacional para o domínio de outras expressões, mormente a canção popular, o cinema e a televisão? Seria possível, finalmente, tentar mapear a permanência de imagens e identidades nacionais nas tensões entre o local e o global? Quaisquer que sejam as respostas possíveis para tais questões, elas dependem de um cruzamento entre identidade nacional e identidade cultural, e de outro entre nação e cidade, uma vez que é a cidade espaço “natural” da cultura, palco dos embates e transformações da modernidade, espaço público para o qual confluem as diferenças e, finalmente, lugar de fomentação do imaginário, que circula em dimensões nacionais ou globais.
Para tentar responder a essas questões lanço mão da perspectiva dos Estudos Culturais e proponho um mapeamento parcial da permanência de representações da identidade nacional em produções que abrangem aproximadamente as últimas três décadas do século XX. Dessa forma, a tese se divide em três partes principais. Na primeira procuro me aproximar do ponto de transição entre o que se nomeou “declínio da arte e ascensão da cultura” no congresso de 1997 da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC). Focalizo os romances Não verás país nenhum (1981), de Ignácio de Loyola Brandão (em capítulo que rearticulei e publiquei na Revista Ipotesi, cuja cópia integral vai anexa ao currículo.), e Sangue de Coca-cola (1980) em leitura conjunta com o tardio Inês é morta (1991), ambos de Roberto Drummond (ainda voltarei a este capítulo). São títulos que, se por um lado mantêm viva a memória política recente do país, por outro já dialogam com gêneros da cultura de massa, como a ficção científica no primeiro romance, ou assumem o hibridismo entre o político, o pop e o histórico, no caso dos outros dois títulos. A principal marca que os une é a da temporalidade. Os deslocamentos ainda são temporais, tanto em direção ao futuro distópico, quanto através da preservação da memória.
A segunda parte privilegia deslocamentos espaciais. Enfrentam-se produções híbridas como o projeto Terra (1997), envolvendo fotos de Sebastião Salgado, texto de José Saramago, e canções de Chico Buarque, e também produções cinematográficas, numa leitura em que se colocam em paralelo as representações nacionais presentes em Bye-bye, Brasil (1979), de Cacá Diegues e em Terra estrangeira (1995) e Central do Brasil (1998), ambos de Walter Salles. A ênfase nesta parte é dada tanto aos deslocamentos para o interior do Brasil, que assumem especialmente valores políticos e místicos na representação nacional, quanto aos deslocamentos para o exterior do país que apontam para um desenraizamento ligado à globalização.
A terceira parte procura discutir a viabilidade das relações urbanas, que se demonstraram esgotadas nas propostas de deslocamento para o interior, especialmente em Central do Brasil, filme em que a cidade é recusada como espaço inviável. Há um retorno às cidades brasileiras, movimento que é negado nas representações do capítulo anterior. Articulando os conflitos sócioeconômico-culturais do ambiente urbano (mas com o foco especialmente voltado para o Rio de Janeiro), o primeiro capítulo desta parte toma como mote os livros Cidade partida (1994), de Zuenir Ventura e Estação Carandiru (1999), de Drauzio Varella. Este capítulo foi parcialmente rearticulado para a participação num seminário interdisciplinar promovido pelo Departamento de Geografia de FFP/UERJ, experiência bastante proveitosa para minhas reflexões.
1SANTOS, Milton. Técnica espaço tempo – globalização e meio técnico científico informacional. São Paulo: Hucitec, 1997, p.38.