Se três cartógrafos visitam uma cidade e dela resolvem fazer um mapa. Três mapas completamente diferentes poderão se apresentar. Serão registros distintos do espaço, demarcados por tempos e afetos igualmente distintos. Entre o cristal e a chama, a racionalização geométrica do traçado urbano e o movimento bruxuleante das existências humanas, incontáveis mapas descreverão a mesma cidade. A mesma? Nenhuma cidade é a mesma e jamais dará conta de ser, em seu mapa, todas as cidades. A cidade, assim com determinante definido singular, é Utopia. Antes, no enfrentamento do que pode parecer estar (e de fato está) fora da ordem, a sugestão é acatar os versos de Veloso, como fez Renato em sua Tese de Doutorado: “eu não espero pelo dia em que todos os homens se entendam, mas sei de muitas harmonias possíveis sem juízo final”1.
Assim como os mapas, os deuses de uma cidade não são únicos. Isaura é uma cidade vertical, a primeira das cidades delgadas de todas as cidades invisíveis de Calvino. Isaura cresceu na horizontal somente até onde seus habitantes conseguiram cavar poços na extensão das águas subterrâneas que lhe proviam, “seu perímetro verdejante reproduz o das margens escuras do lago submerso, uma paisagem invisível condiciona a paisagem visível, tudo o que se move à luz do sol é impelido pelas ondas enclausuradas que quebram sob o céu calcário das rochas”2. Por isso há duas religiões em Isaura. A dos que creem nos deuses inferiores, águas profundas que alimentam e movem a cidade; e a dos que veem os deuses na superfície aonde chegam as águas, nos baldes, nos parapeitos dos poços, nas bombas, na tubulação e nos registros, que chegam aos cata-ventos erguidos acima dos andaimes. Isaura cresce para cima.
Interessará à sobrevivência da cidade o culto dos seus deuses inferiores tanto quanto a dos superiores. Sabe-se que uns não sobrevivem sem os outros. Dito de outra forma, esses cultos consistem em conhecer a cena e a obscena de uma cidade. Não é possível construir a superestrutura dos moinhos de vento desconsiderando aqueles que ali enxergam gigantes terríveis. Os que assim o fazem mancham de sangue o lago. Nossa água restará imprestável. Os moinhos ruirão como a Torre de Babel.
Os três mapas daqueles três cartógrafos estão à venda num empório de estilos. Não só a mesma cidade que mapeiam são outras, como distintos são os traços que as conformam no papel. Mas reconhecem todos, como aponta Raban no livro Soft city, que as cidades são capazes de neutralizar a distinção entre o sonho e a vida real:
Sociology and anthropology are not disciplines which take easily to situations where people are able to live out their fantasies, not just in the symbolic action of ritual, but in the concrete theatre of society at large. The city is one such situation. Its conditions effectively break down many of the conventional distinctions between dream life and real life; the city inside the head can be transformed, with the aid of the technology of style, into the city on the streets. To a very large degree, people can create their cosmologies at will, liberating themselves from the deterministic schemes which ought to have led them into a wholly different style of life. To have a platonic conception of oneself, and to make it spring forth, fully clothed, out of one’s head, is one of the most dangerous and essential city freedoms, and it is a freedom which has been ignored and underestimated by almost everyone except novelists.3
Eis a indicação de um método cartográfico da cidade: menos sociologia, menos antropologia, e mais poetas e ficcionistas como fonte do traçado que há de ser feito na balança (nem sempre fiel) do real que tem como contrapeso o imaginário. A Cidade Maravilhosa, por exemplo – assim batizada, em 1912, pela poetisa francês Jeanne Catulle Mendès e consagrada em 1935 pela marchinha de André Filho – conseguirá sobreviver no concreto de suas ruas fétidas e esburacadas, no descaso evidente nas eternas obras inacabadas e na população que nasce e cresce sob suas marquises? Quanto daquela Cidade Maravilhosa vem à tona no “purgatório da beleza e do caos”, de Fausto Fawcett, com a necropolítica de suas recorrentes chacinas?
Na sequência do trecho citado de Soft city, Raban evoca Robert Warshow que, em um ensaio de 1958, elegeu o gângster do cinema americano como herói trágico da cidade moderna. O ensaísta reconhece que, apesar de haver criminosos reais, o gângster do cinema é um produto da imaginação que retroalimenta o imaginário urbano. Aqui, na Cidade Maravilhosa, a obscena faz parte da cena. Os gangsteres são eleitos e expropriam o imaginário idílico. É como se a paródia da marchinha (“de dia falta água / de noite falta energia”) se transformasse no emblema da cidade, em que esse imaginário hollywoodiano de gangsteres no submundo e da ordem junto ao poder púbico persiste e se revela quantitativamente nas urnas.
Contra isso, A poesia dos deuses inferiores. Esse é o título de um dos primeiros livros de Sérgio Vaz, atualmente esgotado e rearticulado em O colecionador de pedras. O poeta é de São Paulo, cidade que, na metáfora de Sevcenko (2004), cresceu como metástase. Mas vale trazer de lá uma poética, explicitada num pequeno texto, embrião do que viria a ser o “Manifesto da antropofagia periférica”
É preciso sugar da arte
Um novo tipo de artista: o artista cidadão.
Aquele que em sua arte não revoluciona o mundo,
Mas também não compactua com a mediocridade
que imbeciliza um povo desprovido de oportunidades.
Um artista a serviço da comunidade, do país.
Que armado da verdade, por si só, exercita a revolução4.
Estamos diante do autor como produtor, aquele que, segundo Benjamin, “consciente das condições de produção contemporânea está muito longe de esperar o advento de tais obras, ou de desejá-lo. Seu trabalho não visa nunca à fabricação de produtos, mas sempre, ao mesmo tempo, à dos meios de produção”. O trabalho de Vaz não só como poeta, mas à frente da COOPERIFA e de outras ações de produção cultural referenda essa relação. Há, ainda, no manifesto do autor o enfrentamento das “Cinco dificuldades para escrever a verdade” elencadas por Brecht, em 1934, em um panfleto político escrito para ser distribuído ilegalmente na Alemanha nazista: 1) ter a coragem de escrever a verdade; 2) ter a inteligência de reconhecer a verdade; 3) possuir a arte de tornar a verdade manejável como uma arma; 4) ter a capacidade de escolher aqueles em cujas mãos a verdade se torna eficiente; 5) ter a astúcia de divulgar a verdade entre muitos.
Num estudo sobre cartazes do 25 de abril português, Renato lembra que
os modos usar e comunicar a revolução, se são conjugados com a concepção de modernidade, e aí as categorias de ruptura, mudança, progresso, enfim, de crítica, de razão crítica e de consciência histórica, retomam uma longa tradição de uma práxis em que esses modos de usar e comunicar formam uma espécie de arquivo/acervo de procedimentos, de linguagens, de narrativas, de imagens, que estão à disposição dos artistas e dos militantes.5
Nesse sentido, o poeta-produtor Sérgio Vaz se coloca na contramão de um ethos – o da “mediocridade que imbeciliza” – que explicita a obscena na cena do próprio poder do estado.
Os mapas, aparentemente tão díspares, apresentam outro elemento em comum. Os cartógrafos não creem ser válido revelar o profundo da cidade em detrimento do que ali é superfície. Não apostam na dicotomia ontológica entre essência e aparência, pois sabem que o oculto é obvio. Não há nisso, no entanto, um devaneio rizomático, mas a noção de que a cidade constitui de tal forma uma heterogeneidade de representações que constituem em si uma tradição:
um significativo arsenal de imagens, símbolos, mitos, metáforas, narrativas, formando um repertório pronto a ser realocado, repetido, na tentativa de construir sentidos para a realidade urbana, enquanto fenômeno moderno e pós-moderno. Dessa maneira tal repertório constitui uma tradição. E de tal modo que, ao olharmos as imagens da cidade nas artes, na cultura das mídias e nas ciências sociais dos últimos dois séculos, reconhecemos que nossa visão é impregnada por essas imagens que foram inscrevendo-se nessa tradição (em continuidade e transmissibilidade): a representação do objeto cidade é ela própria formatada pelas ações e imaginações dos sujeitos que o percebem, mesmo com concepções distintas de cidade6.
Tome-se, então, como concretização metafórica dessa situação em que a representação é o próprio objeto, um dos poemas do livro Agora aqui ninguém precisa de si (2015), de Arnaldo Antunes, “pedra de pedra”, tem um fragmento que aqui interessa para explicitar essa percepção cartográfica:
o que a faz tão concreta
de pedra de pedra pedra?
será sua superfície
que expõe a mesma matéria
da entranha mais interna?
casca que continua
por dentro do corpo espesso
e encrua até o avesso
sem consistência secreta
repleta apenas de pedra?7
As indagações ajudam a relativizar um suposto sentido oculto, profundo, de existência. O que se dá a ver é o que é. A pedra, que volta à poesia brasileira pelas mãos de Antunes, não é a de Drummond, no meio do caminho, nem a de Cabral, adocicada na glace que disfarça sua rudeza, nem a de Vaz, feita para quebrar vidraças, mas uma pedra heraclitiana, sabedora de que o tempo a transformará em areia. Para falar desse objeto sem substância secreta, ou melhor, cujo segredo de sua consistência é a própria superfície, outras metáforas são potentes. Os que aprenderam a cartografar literaturas e cidades com Renato hão de se lembrar da metáfora da cebola. A casca que se retira revela outra casca, e outra e outra, até o âmago de um objeto que é só casca.
A obscena não é cena, mas também não é oculta.
Caetano Veloso é autor de duas imagens imprescindíveis para ler essa questão na cultura brasileira. A primeira delas, aparece no verso “aqui tudo parece construção e já é ruína” numa canção que já foi citada mais acima, do início da década de 1990, em que denuncia o subdesenvolvimento que permanece fora da nova ordem mundial. A suposta oposição entre aparência (construção) e essência (ruína) não se sustenta. Ruína, neste caso, não é mais do que outra predicação dada à aparência da construção. “Construção-ruína” pode ser elencado como mais um dos paradoxos que configuram a modernidade. Outro dizer, crítico, do mundo que acaba se conformando na superfície da linguagem. Não pode, sequer, tratar-se de uma formulação metafísica, na medida em que fere um princípio clássico da lógica aristotélica, segundo o qual enunciados contraditórios não podem ser verdadeiros ao mesmo tempo. Je est un autre, diria Rimbaud, inaugurando este paradoxo da modernidade em que A é não-A, e deslocando a questão da identidade de sua tautologia fundamental.
A segunda imagem, mais diretamente relacionada à reflexão que aqui se faz, está na canção “Um índio”, de 1976. A percepção final de que o herói mítico “surpreenderá a todos pelo fato de poder ter sempre estado oculto / Quando terá sido o óbvio”. Óbvio-oculto é um paradoxo que articula a imaginação do poder no Brasil. Do racismo que se vende como democracia racial, ao poder armado que se legitima no Estado. Tudo é cena e obscena, óbvio-oculto.
Os cartógrafos ocupam uma posição privilegiada de intelectuais, apesar dos impasses relacionados ao declínio e à queda da cidade letrada. Renato lê esse processo por meio da articulação entre o clássico de Angel Rama, La ciudad letrada, e o estudo de Jean Franco The decline & fall of lettered city. Suas conclusões articulam a ideia de deslocamento, uma das três propostas para o próximo milênio de Ricardo Piglia, como forma de
requalificação da cidade letrada, não mais como um espaço de legitimação ligado aos discursos hegemônicos, e que possa ir além da institucionalização cultural e do processo ilustrado que foi implantado como parte dos planos de progresso e de modernização social (como demonstrou Angel Rama). Reconfigura Piglia a posição do escritor e o imperativo da atividade política, que Antonio Candido detectou em Rama8.
As invasões bárbaras, filme de Denys Arcand, ou cenas da novela Celebridades, da rede Globo, em que João Ubaldo Ribeiro e Silvio Tendler fazem pontas, são exemplos a que Renato recorre, para explicitar, a partir de entrevista do próprio Tendler, “a morte da cidade letrada, com o desmantelamento ético de uma sociedade corrompida pela razão cínica desses tempos de capitalismo globalizado” (p. 128). A esses exemplos seria possível acrescentar uma série de outros fatos, mais recentes, que vêm tornando as redes sociais o mais radical palco de uma guerra não mais de relatos, mas de shitstorm, que colocam parcela significativa dos intelectuais absolutamente fragilizada e atônita.
Aquele lugar, professado por Sergio Vaz, e aqui lido como o do autor como produtor, o da literatura dita marginal ou periférica de uma forma geral, mas não só, deixa claro que as fronteiras da cidade letrada contêm uma circunscrição de classe, de raça e de gênero muito bem definida. A abertura com que Renato enxerga esse processo excludente, racista, sexista, de extração ilustrada está na maneira precisa como formula a percepção da obscena, em Lima Barreto, mas também na abertura com que se dispôs a orientar teses e dissertações sobre a literatura marginal-periférica, sobre a favela, sobre personagens a partir dos quais esse olhar deslocado, à margem, pudesse garantir traços mais justos e inclusivos, mais cores para a cartografia da cidade e da nação, dos temas e dos problemas.
1Esta citação está na tese arquivada na Biblioteca da PUC-Rio, mas não no livro Todas as cidades, a cidade, dela derivado.
2CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 24.
3 RABAN, Jonhattan. Soft city. London: Harvill Press, 1998, p. 65
4 VAZ, Sérgio. A poesia dos deuses inferiores. São Paulo: Cooperifa, 2004
5MARGATO, Izabel.; GOMES, Renato Cordeiro. Literatura / política / cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
6 GOMES, Renato Cordeiro. “BABEL-COSMÓPOLIS: um imperativo digital?”. In: Revista Estudos Culturais. v. 1 n. 1. UFMS, 2009. Disponível em <https://periodicos.ufms.br/index.php/cadec/article/view/4511.
7ANTUNES, Arnaldo. Agora aqui ninguém precisa de si. Companhia das Letras. Edição do Kindle.
8 MARGATO, Izabel.; GOMES, Renato Cordeiro. O papel do intelectual hoje. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, p. 127.