28- Outra – poesia reunida no sarau Manguinhos

Em 2001 foi fundado o Pré-Vestibular Comunitário de Manguinhos, um movimento de educação popular, laico e apartidário, que atuou no campo da educação com a capacitação para o vestibular de estudantes economicamente desfavorecidos de Manguinhos e de outros bairros do entorno. O PVCM funcionou durante mais de dez anos através da autossustentação, com divisão das despesas pelos alunos e responsáveis. Os professores e coordenadores sempre foram voluntários e atuaram dispensando qualquer tipo de remuneração pelo trabalho realizado. Naquele momento passei a atuar ali como professor voluntário de Literatura Brasileira. Já angariara, então, alguma experiência em cursos preparatórios para os vestibulares.

No segundo semestre do mesmo ano, pensei em um sarau de poesias como proposta pedagógica para os estudos de Literatura. Nascia assim o Sarau Poético de Manguinhos. Sua primeira edição foi em 15 de dezembro de 2001. Proposto por mim, foi organizado coletivamente por outros professores e alunos, e teve como tema o Centenário de Carlos Drummond de Andrade. Rapidamente o oiseau lyre da poesia derrubou os muros da sala de aula e espalhou ramas. Desde então, Manguinhos passou a reunir, nos dias de Sarau, poetas de diversos bairros e favelas do Rio. Zona Sul, Subúrbio e Baixada se concentravam naqueles encontros poéticos. Em 2010, o Sarau deixou a sede do PVCM (cedida pela Igreja Santa Bernadete) e mudou-se para o hall do cineteatro da Biblioteca Parque de Manguinhos. Ali passou a manter frequência mensal e o mesmo germe aglutinador da diferença, da outridade.1

Em 2003 os alunos do PVCM lotariam a sala de defesas da PUC-Rio onde defendi meu Doutorado. Foi um período de muito aprendizado humano e afetivo. Eu não pensava, então, que me aproximaria por meio da pesquisa acadêmica da literatura marginal-periférica anos mais tarde. Nem que, em 2013, viria a organizar em parceria com Oswaldo Martins a coletânea Outra – poesia reunida no Sarau Manguinhos.

E sobre ela escreveria:

Muitas já foram as coletâneas organizadas a partir da produção poética e literária de espaços pobres, populares, ou periféricos na última década – não por acaso, a mesma década em que, desde a abertura política e a volta da liberdade de voto e de expressão no país, conseguimos levar mais longe a experiência da democracia e da cidadania. A consciência dos direitos civis e da participação popular na construção da esfera pública atingiu territórios impensáveis, antes tornados invisíveis pela ditadura militar. Não se tratava de uma invisibilidade territorial, mas apenas no mapa da cidadania, equivocadamente compreendida pelo senso comum como “exclusão social”. Era, sim, o apagamento de uma parcela dos cidadãos – os pobres, os subempregados, os de empregabilidade suspeita ou alternativa –, de todos os brasileiros que se sujeitam ao salário-mínimo e à venda barata de seu tempo e de seu corpo através do trabalho (e não se põe em dúvida a dignidade desse ato). Em outras palavras, o apagamento de pessoas perfeitamente incluídas no mecanismo de exploração do trabalho. Mas o território pobre, popular ou periférico, nunca foi apagado, pelo contrário, seus limites sempre foram demarcados pelas fronteiras do preconceito (chegaram a ser indicados pelas placas de alerta das sucessivas prefeituras preocupadas em proteger a chamada gente de bem), e os cidadãos que ali habitam foram tornados invisíveis.

Pensemos a ideia de marginal ou de marginalidade como uma das principais armas para a construção dessa fronteira. É esse, desde que o samba é samba, um dos mecanismos ideológicos através do qual se produz a segregação do território e o apagamento de seus habitantes. Interessa à ideologia que a marca da marginalidade seja mesmo ratificada pela da criminalidade, instituída por um dos mercados que mais movimenta capital no mundo – o das drogas. Dessa forma, a interface que o Estado estabelece com o território dos pobres se dá quase que absolutamente pelo uso da força policial; e, apenas para cumprir o mínimo do previsto na Constituição, mantém aparelhos de educação, cultura, saúde e segurança – pilares da esfera pública de qualquer sociedade. Não confundir força policial com segurança pública.

Qualquer projeto de democratização e de ampliação da cidadania no Brasil depara, além da tarefa de domar e reformar as forças armadas (aqui com iniciais minúsculas, mas herdeiras diretas dos métodos de repressão dos anos de chumbo), com a decepção de encontrar precários aparelhos de cultura, educação, saúde e segurança. Essa transformação é lenta; depende de pequenas ações públicas (não necessariamente do Estado), mas constantes; e, mesmo assim, está sujeita a retrocessos promovidos por escandalosas e retrógradas forças políticas e econômicas, que não largam o osso do velho Brasil. Por isso, é preciso saber relativizar muito bem a afirmação inicial de que, na última década, conseguimos levar mais longe a experiência da democracia e da cidadania. Não há aqui nenhuma euforia. Esse mais longe é muito pouco e ainda corre o risco de retroceder. A maior e a melhor contraforça que pode produzir resistência e avanço da democracia no Brasil é a da própria sociedade civil organizada. De preferência em ações populares e comunitárias que sejam capazes de, diante de projetos do poder público ou das empresas do terceiro setor, pôr, como se diz, um olho no padre e outro na missa; ou seja, transformar, entre a parabélum e o beija-flor, o ressentimento em revolta.

No campo literário, essas ações vêm tornando obrigatório repensar o próprio lugar de representatividade/representação da literatura na sociedade brasileira. Num Estado de perigosa vocação escravocrata, que investiu pesado no analfabetismo de sua população, é evidente que a arte literária, herdeira da tradição letrada (apesar de ter nascido na voz dos poetas, queremos crer, antes mesmo da invenção da escrita), tenha ficado por muito tempo na mão de poucos. Progredir, progredimos um tiquinho, que progresso também é fatalidade. E diante dessa inevitabilidade dos progressos mobrais, transformamos exceções como Machado de Assis, Lima Barreto ou Carolina de Jesus em nova regra. Nosso patrimônio literário, durante muito tempo, ficou restrito às mãos de intelectuais e eruditos, alguns mais outros menos comprometidos com a causa popular, quer dizer, a causa dos ex(?)-escravos. Hoje, em movimentos populares e saraus que se multiplicam por todo o país, a literatura se torna palco de vozes e de escritas diversas e divergentes, de uma gente linda e inteligente, que, com biscoitos finos ou bolinho de chuva, faz literatura absolutamente livre do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.

Nesse contexto, a poesia reunida no sarau de Manguinhos, que este livro apresenta, é mais uma das coletâneas organizadas a partir da produção poética e literária de espaços pobres, populares ou periféricos, mas é outra, diversa, diferente, seguinte e ulterior.

Dividi esse texto de apresentação com Oswaldo. Suponho que esta tenha sido, integralmente minha parte. Mas não há muito como ter certeza. Há textos que são nossos e indivisíveis.


1Parte significativa da documentação sobre O Sarau Poético de Manguinhos pode ser encontrada no Blog: http://poesiamanguinhos.blogspot.com

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *