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Alexandre Faria: um poeta sempre atuante
Por Marisa Loures
O poeta e professor da UFJF Alexandre Faria reúne poemas que mapeiam alguns dos principais crimes políticos ocorridos no Brasil ao longo dos últimos 26 anos, em “oourodooutro” – Foto Fernando Priamo |
Importante começar este texto invocando as últimas palavras do poeta, em “oourodooutro”(textoTerritório, 124 páginas). Elas são certeiras. Talvez, assim, os debates que tomam conta das redes sociais deixem de ser tão vazios e ensimesmados. Talvez, assim, a gente não se esqueça do outro. Isso porque, sem meias palavras, na página derradeira, o poeta escancara barbaridades ocorridas no Brasil ao longo dos últimos 26 anos. Crimes políticos resultantes do ódio. “oourodooutro” foi composto “há 25 anos das chacinas/ de vigário geral, carandiru e candelária/ há 22 anos do massacre/ de eldorado dos carajás/ há 21 anos que foi queimado vivo/ galdino Jesus dos santos/ há 13 anos do assassinato/ de doroty mae stang/ há 7 anos do assassinato/ do cacique nísio gomes/ há 5 anos do desaparecimento/ de amarildo dias de Souza/ há 3 meses do assassinato de marielle franco e anderson gomes/ aos gritos de #lulalivre”, escreve o poeta Alexandre Faria.
Escrita como uma resposta aos tempos atuais, a nova obra do professor da Universidade Federal de Juiz de Fora reúne muitos poemas que foram publicados, originalmente, em sites, blogues e Facebook. Ainda que, inicialmente, não fosse sua intenção levá-los para um livro, “com o recrudescimento de ações autoritárias e com a intransigência e o conservadorismo que vão crescendo no Brasil”, ele percebeu que não havia outro caminho além desse. Contudo, paralelamente a essa decisão, ele foi se afastando do que pode ser considerada uma “militância política e on line”. “Começou a me cansar a maneira pouco reflexiva como questões sérias e complexas da sociedade passaram a ser objeto de disputa de opiniões, quase sempre agressivas e violentas, mas sem disposição para enfrentar os problemas com a complexidade de um pensamento que enfrente as contradições e as dificuldades que lhe são inerentes”, desabafa, para logo explicar o título e o planejamento gráfico da publicação.
“Todos falando a partir de suas convicções, a partir de suas certezas, e uma falta de abertura enorme para a diferença, para a alteridade. Então, pensei ‘oourodooutro’. O outro, a alteridade, como esse lugar da riqueza. Quis um título em que tudo isso se aglomerasse como uma palavra só, para nomear essa coisa mesmo. O outro é central aí, assim como o ouro é central. Não é uma coisa tentando definir a outra. É uma alteridade como uma necessidade, uma riqueza. Pensei, também, num livro que fosse menos clean. Meus últimos livros eram muito cerebrais, com poemas muito curtos, e com uma página com bastante espaço em branco. E, como é um livro oriundo de poemas que participaram de um debate público nos últimos anos, resolvi fazer uma publicação mais suja mesmo. Essa coisa de juntar as palavras aparece em vários momentos, e a questão de vazar da mancha gráfica da página, vazar até da própria página também. Algumas palavras no livro não acabam. Acaba a página, mas o verso continua, e usei também uma série de recursos manuscritos. Em algumas páginas, inseri os manuscritos como interferências e comentários ao livro.”
Em “oourodooutro”, os poemas assumem várias vozes. Não só a do sujeito que se coloca na posição de superior e que se diz militante da paz do homem porque, no conforto do seu lar, por telefone, ajuda uma instituição de caridade. Mas a do negro, da mulher, do índio e do pobre. Leio “oourodooutro” como um grito de desabafo diante de uma sociedade que sempre apresentou a mesma cara. O lançamento do livro está marcado para esta terça-feira, às 18h, na livraria Quarup (Rua Padre Café 484 – São Mateus).
“Existe uma tentativa de se vender uma simplicidade que se esvazia em opiniões que viram opiniões autoritárias, totalitárias e que, na verdade, não enfrentam a complexidade do problema que nós estamos vivendo, como experimentar a construção de uma vida pública, a construção de uma sociedade a partir das diferenças. E são grandes as diferenças.”
Marisa Loures – Sobre essa questão da alteridade, a Fernanda Vivacqua, sua orientanda no PPGLetras, começa a orelha do livro dizendo que “ao falarmos muito do ‘nosso lugar’, não acabamos perdendo a dimensão do outro? […] De um lado a escrita sobre o ‘outro’ muitas vezes esbarra numa forma de colonização. […] Mas, por outro lado, me parece tão cômodo não tentarmos produzir um discurso sobre o ‘outro’, porque, de uma certa forma, assim também não pensamos em nós.” É um impasse que seu livro apresenta. Quem são esses outros?
– Alexandre Faria – Gosto muito dessa leitura da Fernanda. Esse texto da orelha vem de uma carta que ela escreveu. Ela é uma das primeiras leitoras desse livro quando ele ainda era um projeto. O comentário dela se desdobra de uma forma muito interessante, porque, realmente, hoje, uma das questões centrais da sociedade é o lugar da fala. Quem fala de onde, qual a autoridade que tenho para falar do que estou falando? Então, isso também acaba se tornando um limite para aquilo que eu estava chamando de uma interação com o outro e de uma percepção da diferença, porque, se eu falo apenas do meu lugar de fala, vou falar por mim, vou falar pelos meus, e cada um vai falar pelos seus. Isso é extremamente legítimo, isso representa um lugar de conquistas na sociedade brasileira, de grupos que são sistematicamente marginalizados: as mulheres, os gays, os negros, e por aí vai. Então, garantir esse lugar de fala é fundamental. Isso se torna uma questão para a própria literatura brasileira e para a tradição da literatura brasileira, que teve sempre um intelectual, um sujeito branco, homem, da classe média, que falava pelo pobre, que falava pela mulher, quando falava; pelo gay, quando falava; e pelo negro, quando falava. Isso explode de uma forma muito positiva. Mas, ao mesmo tempo, resolvi encarar um desafio de trazer um livro em que eu procurava expor as contradições dessas vozes. Na verdade, os poemas ali não têm a minha voz como poeta apenas, mas eles são uma multiplicação de vozes e de personagens. Tem a voz feminina ali, tem a voz do homem branco, tem a voz do homem negro, da mulher negra. Enfim, isso vai se fundindo, vai se colando ali, na tentativa de problematizar isso. Aí, na leitura da Fernanda, ela aponta para as contradições. Realmente, é muito difícil a gente querer falar do outro, querer assumir uma posição em relação ao debate público na sociedade, uma posição em relação às necessidades que os grupos sociais minoritários têm, sem querer tomar o lugar deles. É isso o que tem movimentado, inclusive, todas as ações políticas. É sempre um grupo, ou um político, defendendo a necessidade do outro. Então, não é dessa forma e com essas certezas, mas é justamente expondo as contradições, ou seja, a crise na sociedade brasileira não é simples. Existe uma tentativa de se vender uma simplicidade que se esvazia em opiniões que viram opiniões autoritárias, totalitárias e que, na verdade, não enfrentam a complexidade do problema que nós estamos vivendo, como experimentar a construção de uma vida pública, a construção de uma sociedade a partir das diferenças. E são grandes as diferenças.
– Tem um poema seu que diz assim: “eu muito bem branco/ sei exatamente o que é ser escravo do dia” […] “eu me amo/eu me acho”. Ali está o homem que chama o Caetano de “merda” e o Chico Buarque de “maldito”, que mantém aquele discurso de que é militante da paz do homem porque está em casa, no conforto do lar, contribuindo com alguma instituição de caridade por telefone. Esse sujeito termina dizendo que vota “até no Lula!”, só não dança. Senti uma ironia muito grande nesses versos e parece-me que ele sintetiza bem o livro…
– A ironia não pode faltar nessas horas. Eu a entendo como um lugar potente de trazer à tona a diferença. A gente percebe quando as pessoas estão tolerando pouco a ironia, ou estão entendendo pouco a ironia. A gente está vendo cada vez mais, no dia a dia, pessoas incapazes de ler a ironia, isso como uma relação com a própria crise da alteridade. E a ironia corrói tudo isso. Então, de fato, a ironia não pode faltar, e esse sujeito do poema que você citou se marca como uma diferença. Justamente, o que ele nega e o que ele vê nesse outro que ele explora, que ele violenta, ele vê a dança. E a dança não está na dimensão, no etos desse sujeito branco.
“Sempre é, e eu nunca deixei de me sentir um poeta sempre atuante. E a condição do poeta atuante, pensar um escritor que atua, não é simples, porque, quando a gente fala de atuar, a gente está falando de atos, de ações.”
– Acredito que seja dever do poeta interpretar o seu tempo. Você é um poeta que não se cala. No entanto, resolveu se afastar, nos últimos meses, do que você chama de militância política e poética on line. Não era o momento de atuar ainda mais?´
– Sempre é, e eu nunca deixei de me sentir um poeta sempre atuante. E a condição do poeta atuante, pensar um escritor que atua, não é simples, porque, quando a gente fala de atuar, a gente está falando de atos, de ações. E, necessariamente, o escritor trabalha com palavras. E em que medida as palavras são ações? O que eu acho que a gente tem que ter cuidado é com essa ideia de que nós temos que interpretar a realidade. É como se as palavras que resultariam desse processo de interpretação da realidade fossem dar um sentido para a realidade, porque o que todo mundo está defendendo é o sentido e a verdade da sua posição. Então, acho que interpretar funciona mais no sentido de quando a gente diz assim: o ator interpreta um personagem, a interpretação como algo que se faz através de um ato. E o poema, nesse sentido, não é um discurso, não é apenas uma palavra, mas ele se constitui como ato, o livro é como ato. E para isso é necessária uma série reflexão não só sobre o que se diz, mas sobre o como se diz, o que é que nós podemos construir para esse ato, que é o poema, que é o livro de poesia, que é o romance. E, na verdade, as redes sociais vão se mostrando muito refratárias à reflexão metalinguística. A Iinguagem lá fica chapada, diz direto. A gente vê pelo interesse muito maior que as pessoas têm por fotos, imagens, do que por textos. A própria linguagem verbal ali fica prejudicada. E isso, na verdade, é inócuo, fica lá uma série de pessoas falando de si, discutindo algumas coisas. É claro que algumas discussões são necessárias, a rede é fundamental para interligar pessoas e propor, em certos momentos, ações que são decisivas, inclusive, em defesa de vítimas. Então, não estou aqui falando mal da rede como um todo, mas ela é uma rede, justamente, para ligar pessoas, e não para ficar sendo uma vitrine sem discursos. Discursos que não conseguem sair da esfera privada de quem os produz para atingir a vida pública.
– Seus poemas não apresentam claramente uma posição partidária. É importante que essa posição partidária fique sempre distante da poesia?
– Até por essa percepção que tenho do poema como um ato, indiretamente, você vai ver que as minhas ideias se coadunam com ideias políticas ligadas a um pensamento de esquerda que tem correlato na política. O meu livro termina com a #lulalivre, mas eu tento não fazer disso o motivo da poesia. Eu tento fazer com que a poesia penetre nas cenas, nos embates discursivos e políticos em que essa discussão emerge. Então, o leitor pode se incomodar, porque o meu poema não toma esse partido. Embora eu ache que a melhor maneira de tomar esse partido é, justamente, discutindo mais detidamente a complexidade desses fatos e dessas ideias, a complexidade da sociedade brasileira, porque a gente sabe que a sociedade é violenta, ela explora e faz vítimas sistematicamente.
– A nota de apresentação do livro é do dia 7 de abril, dia da prisão do Lula. Foi a gota d’água?
– Ali foi a gota d’água, e aí a prisão do Lula não representa apenas a tentativa de conter alguma política que foi, minimamente, diferente do Brasil ao longo de toda nossa história republicana. Ela representa uma prepotência de uma classe representativa no Brasil que despreza o pobre, o negro, o nordestino. Então, a prisão do Lula tem a ver com esse desprezo pelo outro que a sociedade brasileira, independentemente de classe ou de qualquer outra posição, sabe ter e construiu isso de forma muito arraigada, muito profunda. Isso fica muito claro pra mim.
– No final da publicação, você diz que “oourodooutro” foi composto há 25 anos das chacinas de Vigário Geral, Carandiru e Candelária, há 5 anos do desaparecimento de Amarildo dias de Souza, há 3 meses do assassinato de Marielle Franco e por aí vai. Leio o seu livro como um grito de desabafo. É como se ele estivesse aí para mostrar que o Brasil sempre foi e sempre será desse jeito. Mas será que há espaço para mudança?
– O poema mais antigo desse livro é de 1992. As chacinas da Candelária datam por ali, e aí eu fui tentando mapear alguns dos crimes políticos, alguns dos crimes que são resultantes desse ódio que a sociedade brasileira consegue expressar pelo outro. Mas, se a gente quisesse ir para o início da república, para a colônia brasileira, esse ódio está instaurado lá na escravidão e nas diversas formas de intolerância e de golpes que afirmaram sucessivamente a manutenção do poder no Brasil. Você me pergunta se isso tem jeito. Eu, sinceramente, te digo, para me colocar na complexidade que os poemas resolvem encarar, que não se trata apenas de ter jeito, de dizer: “olha, a solução é essa ou aquela”. Na verdade, compreender esse processo como um processo cíclico, como algo que se repete, e para que a gente pudesse sair dele, seria necessário realmente um autoconhecimento e uma autocrítica muito forte da nossa vida política. E o sentido e o significado da nossa participação política. Isso tem jeito, isso é possível fazer, isso se faz em longo prazo, não é de uma hora para outra. Ninguém vai fazer milagres, e acho que a crença em milagres, em salvadores, em messianismo, é um dos motivos por que isso permanece. E é claro que se faz com o atendimento às necessidades primárias da população: saúde, alimentação. E depois se faz com educação, com formação e, sobretudo, com liberdade. Liberdade para que a educação possa ser experimentada como o lugar onde as pessoas vão aprender a conviver com a diferença, com o outro. E, sobretudo, respeitar esse outro. Esse seria um caminho para fundar uma ética, que é ética que falta na sociedade brasileira. Precisam passar algumas gerações. Tem jeito, tem. Mas, como? Por onde?
– Segundo você, esse livro remete a um tempo do qual, naturalmente, você vai se afastando. É um trabalho que te valeu como um processo de passagem, como se, simbolicamente, você estivesse atestando a morte de um poeta que já não é. Quem era o poeta de antes e quem é o de hoje?
– Acho que a capa do livro constrói isso. Ela é uma foto minha com duas moedas nos olhos como se eu estivesse, realmente, morto. Isso é um costume dos povos antigos. Os gregos, por exemplo, punham moedas no morto que seriam para pagar o barqueiro que ia atravessar o rio que leva ao reino dos mortos. Muitas vezes, eu até disse que meus livros funcionavam como projetos. Então, os livros que eu fiz antes, “I”, “Venta não”, são projetos coesos, inteiros. São pensados como livros, embora eu tivesse sempre uma poesia participativa que eu ia usando a internet, os meios digitais, como suporte para eles, porque eu achava que era onde eles poderiam circular melhor. E, agora, eu resolvi fazer um livro que recolhesse tudo isso, mas não apenas como um efeito de melhora ou de recolhimento de uma série de poemas que pertencem ao passado. Primeiro, pela constatação de que aquilo que eu achava que pertencia ao passado não pertence. As coisas voltam a acontecer sistematicamente no Brasil. Um poema de 1992, em que eu estou falando do Rio de Janeiro, é atual até hoje: “o seu governo em Bangu 1”. Então, por perceber isso, eu reconheço que existe ali uma permanência de algo que, para mim, já seria passado até na própria ideia da extração do verso. Mas, ao mesmo tempo, toda morte é um renascimento, é um novo sujeito que tenta, na verdade, não matar esse passado, não enterrar esse passado, não zerar ou silenciar esse passado, tenta se fazer até pelo próprio passado. Os poemas, muitas vezes, dão vazão a uma experiência que é memorialística. Aí, por incrível que pareça, por mais que tenha uma coesão e seja pensado como uma unidade, o livro é bastante pessoal, é muito memorialístico também. São os poemas em que eu deixo, de uma forma mais direta, haver um atravessamento subjetivo, e isso me remete a experiências que já fiz na prosa, por exemplo, como “Anacrônicas”. E eu acho que o que o que pode vir pela frente – eu não posso garantir, porque a gente nunca sabe o que vai fazer exatamente no plano da criação-, mas o que eu acho é que esses poemas estão me levando para a prosa. Eu devo voltar a experimentar a narrativa mais longa.
Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.
Alexandre Faria – Gaveta de DesGuardados