10- Outro de mim

El encuentro fue real, pero el outro conversó conmigo en un sueño y fue así que pudo olvidarme; yo conversé con él en la vigilia y todavía me atormenta el recuerdo.
(Jorge Luis Borges: El otro)

Voo de volta ao Brasil, sobre o Atlântico, um Boeing lotado. “Tire a máscara apenas para comer, coloque uma máscara nova logo em seguida e use álcool gel o tempo todo, cada coisa que tocar, álcool gel em seguida. Não fique sem comer. É muito tempo.” A recomendação me foi dada por telefone, um dia antes, por minha amiga Cynthia Magluta, médica sanitarista. Entre uma higienização e outra, quando o cansaço já era enorme e o sono não pegava apareceu-me na memória o adolescente que trinta e três anos antes ingressou na Faculdade de Letras da UFRJ, em 1987.

Acho que no avião, naquele cardápio de músicas que fica na telinha da traseira da poltrona da frente, ouvi “Encontros e despedidas”, do Milton e do Brant, na voz de Maria Rita. E o adolescente, que gostava dessa música, na época na voz do próprio Milton, e cantou-a inclusive para uma namorada da faculdade, voltou como alguém que compreendia mais do que eu mesmo o sentido daqueles versos, “a hora do encontro é também despedida”.

Se o evoco aqui com sua intuição cega de poeta de 17 anos, idade em que, lembrando Leminski, é muito fácil ser poeta, faço-o menos como marco inicial de alguma carreira que, naquela época, ainda era incerta e pendia tanto para o campo da poesia e dramaturgia (acabara de escrever e dirigir, um tanto precocemente, uma peça financiada pelo grêmio estudantil do Colégio Estadual Prof. Clóvis Monteiro) quanto para a segurança de um emprego no Banco do Brasil, onde ingressara aos 14, como Menor Auxiliar de Serviços Gerais (forma polida como a empresa chamava seus Office Boys). Se, por um lado, a opção inicial pela vida de bancário (ou pelo que, achava, podia haver de vida nisso) permitiu financiar uma biblioteca razoável e alguma tranqüilidade material, obrigou-me, por outro, a peregrinar por diferentes faculdades de letras, a fim de conciliar horário e deslocamento, num calvário de transferências, análises de currículo e processos de isenção que estenderam a graduação por oito anos quase ininterruptos. Dois anos na UFRJ, mais dois na extinta FAHUPE, mais quatro na UERJ foram mais do que suficientes para lançarem-me ao mestrado e abandonar definitivamente a carreira de bancário. Mestrado e doutorado foram, diga-se de passagem, consecutivos e sem atropelos nem atrasos.

Graziela Paes, uma das minhas orientandas de doutorado, contou que quando fez sua inscrição no PPG, ficou curiosa com esse périplo de transferências estampado no meu Lattes. “É seu curriculum mortis”, comenta mencionando um famoso texto de Leandro Konder1. “Nunca conheci quem tivesse levado porrada”. O poema de Pessoa, segundo Konder2, inaugura o gênero Curriculum Mortis. Não posso abdicar da autocrítica neste momento. Nunca o fiz e não será agora que o farei.

Como no conto de Borges citado na epígrafe, encontro com alguém que fui, mas que talvez ainda esteja por aqui. É possível que eu tenha podido dizer-lhe o que acontecerá, aqui, na vigília, mas nada impede que ele se esqueça do sonho. Muitos anos antes de ler este conto de Borges, li, ainda garoto, pelos meus 13 ou 14 anos, um de Fernando Sabino. Este é um autor deixado de lado entre os que… tornam-se leitores de Borges, por exemplo. Uma vítima típica de certo esnobismo acadêmico. Basta buscar no banco de teses e dissertações da CAPES. Em 24/04/2021, o termo “Fernando Sabino” resultou 44 dissertações de mestrado e 4 teses de doutorado. Na mesma data, “Guimarães Rosa” resultou, respectivamente, 655 e 273. O que o futuro daquele ano de 1956 reservaria para dois de seus principais lançamentos? Neste acerto de contas com o passado, não posso silenciar, por exemplo, que o delírio de entrar em Grande sertão: veredas, aos 17 só foi possível porque me fez a cabeça, aos 13, O encontro marcado. No conto a que me referia, publicado no volume A vida real (1952), o rencontro entre o homem adulto e o seu duplo, menino, resulta num voluntário afogamento deste por aquele.

Achei que seria assim:

Não faz mais não! – pediu, cuspindo água. – Você quase me…

Afundeio-o de novo, com força, e o mantive debaixo d´água por mais tempo. Puxei-os pelos cabelos e vi seus olhos esbugalhados num apelo mudo, o rosto transtornado, a boca arfante… Empurrei-o para o fundo pela terceira vez e senti seu corpo se contorcer frenético tentando livrar-se, as mãos ansiosas arranhando-me o punho. Firmei-me na pedra, a segurá-lo sempre dentro d’água, que borbulhava ao redor de meu braço, espumando. Vi ainda um pé se erguer num coice desesperado, quebrar a superfície e desaparecer de novo. O corpo palpitante sob minha mão relaxava, sem forças, abandonado. Dei-lhe um último empurrão e me ergui, afinal. Voltei-me sem pressa, comecei a descer a montanha. (Fernando Sabino)

Mas foi assim:

He cavilado mucho sobre este encuentro, que no he contado a nadie. Creo haber descubierto la clave. El encuentro fue real, pero el otro conversó conmigo en un sueño y fue así que pudo olvidarme; yo conversé con él en la vigilia y todavía me atormenta el encuentro. (Jorge Luis Borges)

Este memorial, já se deve ter notado, além das colagens, será digressivo e fragmentário. Recortarei pedaços de uma história escrita conforme a memória pedir. Esses dois fragmentos, por exemplo, não foram originalmente selecionados para esta peça, mas calham. Estão no meu blog desde de dezembro de 2012,3 e ali apareceram depois que, tendo ido como convidado para a Primeira Jornada de Literatura Afro-brasileira Contemporânea, organizado pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da UNB, resolvi tirar uma tarde de folga e passear pelos lugares de Brasília em que morara entre 1978 e 1983 (dos 8 aos 13 anos).


1 https://www.marxists.org/portugues/konder/1983/11/curriculum.htm

2 http://www.letras.puc-rio.br/unidades&nucleos/catedra/revista/5Sem_10.html

3 http://desguardados.blogspot.com/2012/12/blog-post.html

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