16- 2019 – Breve inventário de perdas

Juiz de Fora, 06 de setembro de 2019.

Queridos amigos,

Eram 11 da manhã quando parei o carro na saída de Juiz de Fora. Chorei, de novo. Ouvi umas pontadas que venho sentindo na lombar. Ouvi a memória de 15 anos de convívio quase semanal com a BR040 entre Rio-JF-Rio. Decidi abortar a viagem e trocá-la por uma carta. Não sei o quanto as letras serão capazes de produzir a presença do meu corpo na despedida do nosso amigo, muito menos o quanto qualquer coisa que eu diga pode valer um abraço, corpo a corpo, em cada um de vocês. Lamento tudo, a nossa perda e a minha falta, que sinto como vergonhosa deserção de um rito que nos une física e espiritualmente. Uma carta é um mínimo possível, inevitável, para mim, para nós, que ainda acreditamos no poder das palavras. Talvez longa demais, ou, como se diz por aí, “TL;DR”. Leiam quando e se quiserem, e guardem para si.

Como toda carta, começo dando notícias de mim. Que ano difícil, 2019. Para além dos desarranjos da esfera pública, pessoalmente esse ano está me ensinando a lidar pela primeira vez com a perda de amigos que constituíram referências inestimáveis na minha trajetória. Foram perdas de membros de uma segunda família, que o destino me levou a constituir e com quem, para além das trocas profissionais, criei laços de amor. Sergio Vieira foi meu professor de Português no ensino médio. Um cara das antigas neolatinas. Durante a minha graduação estudei francês, italiano, espanhol, latim e filologia em cursos que ele oferecia na própria casa. Também dei aula pela primeira vez em sua casa, num cursinho pré-vestibular. Para não dizer que nos tornamos amigos, digo apenas que Sergio teve, naquela época, o quarto filho, Felipe, de quem me tornou padrinho. Sergio partiu em maio. Écio Salles foi meu melhor e mais íntimo companheiro nos anos 86-89. Fim do ensino médio e início da faculdade. Frequentou as aulas do Sergio comigo. A iniciação na literatura, na política e na compreensão da vida pública começou ao lado de Écio. Com alguns lapsos e afastamentos, durou até julho desse ano ingrato a parceria que mantínhamos, nossas preocupações com a literatura periférica e minha colaboração na formação dos jovens autores da FLUP. A morte precoce de Écio me levou (e paradoxalmente trouxe à tona) um pedaço da minha história que ainda estou procurando recontar. Agora o Renato. Fiquei muito sem palavras. E gostaria que entendessem toda a ênfase egoísta que pode carregar o possessivo, quando eu disser que o Renato foi o MEU orientador. Seus orientandos, meus irmãos, vão entender. Foi pra ele que liguei antes de fazer o concurso em JF e em outros momentos de aperto ou de orgulho pelo meu trabalho. E mesmo quando não ligava, era reconfortante saber que ele estava ali, neste lugar que, desde ontem, quando Beto, Alexandre e Julio, quase ao mesmo tempo, me deram a notícia, está vazio.

Ontem, no meu silêncio, na minha incapacidade de nomear e preencher com palavras esse vazio, Tatiana Franca, uma das minhas primeiras orientandas de mestrado e doutorado, postou no instagram a capa da primeira edição do “Todas as cidades, a cidade” e escreveu: “Vai, querido, traçar mapas de outros lugares, alhures, mais dignos da tua inteligência que as cidades deste nosso tempo. Aqui, teus escritos serão sempre guias dos nossos roteiros de pensar. Até qualquer hora, Renato!”. Pessoalmente, o fato de uma orientanda tão amada, que estivera pessoalmente com o Renato uma única vez, num evento na Colômbia, o fato de ela escrever desse meu sentimento me calou fundo. Deixou claro que esse vazio que eu estava tentando preencher no tempo para trás, já foi preenchido e continuará sendo para frente. E eu respondi: “Tatiana, meu amor, você não imagina o significado, para mim, não só de suas palavras, mas de seu gesto. Me dá sentido e direção, nessas cidades hipervisíveis do nosso tempo, que têm me deixado tão mudo e avesso às redes. Para ter uma ideia, foi o Gilvan quem me avisou sobre sua postagem. Seu gesto me fala de uma costura que vamos fazendo de nossas vidas, como uma linha, uma tradição – no melhor dos sentidos, filia, filiação, não só intelectual, mas humana, existencial. Uma das metáforas obsessivas do Renato era a da cebola que se descasca ad infinitum, por baixo de uma casca, outra casca. Queria te dizer que estou descascando cebolas. Mas as lágrimas vêm de outro lugar, inquieto e angustiado, que seu gesto apazigua. Muito obrigado.”

Queria agora perguntar como vocês estão. Me respondam no seu tempo. Julinho já me falou disso ontem, quando enviou pelo ZAP duas fotos, uma dos anos 90, com a turma da PUC, na qual pude reconhecer, além do próprio Júlio, Renato, Pina, Eneida e Evando, e outra, mais recente, com Renato, Silviano, Stefânia, Eneida e Ângela. Percebi que os dois tempos fotográficos de Júlio concertavam uma narrativa, para ele mesmo, como a postagem de Tatiana o fez para mim. A única pessoa para quem escrevi e perguntei “como você está?” foi a Vera, ao que ela respondeu, “Alexandre querido, perdi meu melhor amigo. É uma dor imensa. Obrigada pela mensagem. Um beijo.” Escrevi para Vera porque sabia disso e porque ela está na minha história pelo mesmo tempo que o Renato. Andamos em paralelo. E queria muito dar hoje um abraço na Verinha.

Queria dar esse meu abraço para a Verinha em cada um de vocês. Lamento muito a distância. Lamento ter cedido às dores do meu corpo. Que, pelo menos, essa carta seja uma presença possível, um abraço possível, até um próximo encontro em que possamos conversar e trazer, também com palavras, que só elas restarão, no entrelaçamento bruxuleante das nossas existências, a presença viva do Renato.

Com carinho,

Alexandre

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