Be water, my friend (Bruce Lee)
“Assim é a água” foi um dos títulos de Marcelo Yuka destinados aos concorrentes do grupo que coordenei na Flup de 2019. A canção começa com a colagem de uma famosa entrevista de Bruce Lee. Traduzo: “Esvazie sua mente, seja sem forma, sem forma como a água. Se você colocar água em um copo, torna-se o copo. Se colocar água em uma garrafa, torna-se a garrafa. Se colocar em um bule de chá, torna-se o bule. Agora, a água pode fluir ou pode bater. Seja água, meu amigo”. Precisei (precisamos eu e o grupo) de muito Bruce Lee para a FLUP de 2019. E talvez isso só me venha à consciência agora.
Num sentido, o ensinamento do mestre do Kung Fu esteve presente no aprendizado da construção de narrativas-curtas. Assim como a água se conforma em um copo, uma garrafa, um bule, a linguagem se conforma em um gênero, em diálogo com um texto original. Há nessa conformação os limites do gênero e a autonomia de um texto original. Mas, diferentemente do copo, da garrafa, do bule, autores não estavam dependentes de formas fixas. E um dos grandes aprendizados do grupo foi o de fazer fluir seu texto e perceber que essa fluência, nos limites da linguagem, resulta numa forma, a ser burilada e ganhar autonomia, em relação ao texto original, e a outros textos do gênero. A variedade das narrativas resultantes, tanto as que estão aqui quanto as que se guardaram no porvir (todas muito boas!), indica isso. E o leitor perceberá a potência do que bate e do que flui em todos os contornos deste livro.
Noutro sentido, o político, o aprendizado de Bruce Lee está na própria permanência da Flup. Fluímos, todos os que militam pela cultura, pela inclusão, pela prevalência dos saberes periféricos, fluímos no fio da navalha do não, do impedimento, da perseguição. Contornamos como a água os cortes nos editais, os empecilhos burocraticamente construídos nesse primeiro ano de um governo dedicado ao desmonte da consciência, do respeito e da afirmação positiva da alteridade no Brasil. E também, como a água, batemos e bateremos na burrice e no preconceito generalizados da parcela da sociedade que apoia e compreende essas ações.
Finalmente, o último aprendizado, e o mais duro, foi o da perda. A Flup de 2019 será sempre marcada pela partida de um de seus idealizadores, e meu amigo de périplos suburbanos desde 1985, Ecio Salles. Lembrarei muito bem do cuidado com que fazíamos fluir os encontros, o aprendizado e a criação enquanto as notícias tristes e preocupantes nos rondavam. Nesse sentido é imprescindível agradecer a todos os candidatos, que souberam colocar o espírito de competição no seu devido lugar, e fazer prevalecer a amizade e a solidariedade para que tudo transcorresse com a tranquilidade possível. O abraço coletivo que demos no Júlio Ludemir jamais me sairá da memória.
Se a água pode fluir ou bater, a Flup está aí, como a água. Esta publicação o atesta. Nós continuaremos aqui, enquanto nos couber, batendo e fluindo. Agora a Ecio Salles basta fluir. Sempre. Seja como a água, meu amigo. Continue na luz dos seus guias e na força do seu legado. Tranquilo e infalível.